19/01/2016

A Cigana Leu o Meu Destino

Seu pai tinha muitas crenças. Não ia à igreja. Nem praticava uma religião específica. Mas, não era um homem sem fé. Acreditava na sorte, no azar e em outras sutilezas que, dizia ele, de vez em quando se manifestavam. Achava que a vida seguia mais ou menos as regras dos jogos. Se os dados favoreciam naquele dia, dobrava a aposta. Ganhava muito. Pedia mais ainda. Acreditava, porém, que o dia seguinte seria o da redenção. Um dia é da caça, outro do caçador. 
Quando perdia muito se lembrava de antiga expressão: “o dinheiro do jogo é amaldiçoado. Ele nunca fica no bolso do vencedor. Ele volta para a mesa de apostas”, falava para si mesmo como tentando se convencer de que o jogo não levava a nada. No dia seguinte esquecia tudo e lá estava novamente apostando para recuperar o dinheiro perdido.
Entre tantas crenças tinha uma em especial: não desagradar uma cigana. Entendia  que praga de cigana era a pior coisa da face da Terra. Pior não: pior era praga de madrinha. Esta era incurável. Coitado de quem tivesse uma praga rogada pela madrinha. Era dor e sofrimento na certa. A de cigana era muito poderosa. Quase igual à da madrinha.
E o menino cresceu ouvindo aquilo. Sua cidade vez por outra recebia uma invasão de ciganos. Montavam acampamento num local amplo. Cercavam a barraca maior com reluzentes caminhonetes que faziam as vezes de paredes. Por cima jogavam a lona amarela, empurrada para cima por um mastro colocado no centro. À noite, uma fogueira e acesa bem no meio da barraca onde assavam carnes. Tocavam músicas alegres e dançavam sem qualquer vergonha. Os mais velhos tomavam vinhos e licores até suas pernas se negarem a sair de perto do fogo. Durante o dia, abandonavam a barraca e saiam aos bandos falando alto numa língua esquisita e incompreensível, levando panelas, frigideiras e quinquilharias para vender de casa em casa. Batiam as panelas e as frigideiras para demonstrar a qualidade do produto. Insistiam o que dava. Jogavam o preço nas nuvens e vinham baixando. Até que a dona de casa cansada do estica e empurra concordava em dar alguns trocados pelas panelas que nem precisava.
As ciganas mais velhas atacavam na parte central da cidade. Colocavam duas adolescentes belas, com roupas coloridas e olhos bem delineados, com colares, anéis e pulseiras chamativas na comissão de frente. Elas grudavam sensualmente nos braços dos homens e iam arrastando o vivente até a velha cigana. Cabia a ela o golpe final. Pegava a mão direita e ia metralhando coisas sobre seu futuro. Falava de amor, de dinheiro, de acidente, de morte de familiar, de doenças. Tudo muito vago. Bastava pagar alguma coisa para saber com detalhes sobre tudo o que viria pela frente. Se não pagasse suas costas eram metralhadas por um milhão de impropérios.
O rapaz, já moço, tinha verdadeiro pavor disso tudo. Tremia só de ver uma cigana ao longe. Como nunca carregava um Cruzeiro no bolso da calça, encontrar uma cigana era como se encontrasse o diabo.  Se já não tinha grande sorte imagina se desprezasse a velha. Não ia dar dinheiro porque não tinha e ela jogaria um rosário de pragas que aniquilariam sua existência. Para evitar tudo isso, dobrava uma rua antes, corria um pouco, apressava o passo e nem olhava para trás. Seu coração disparava e só muito tempo depois ia se acalmando.
Passou boa parte do tempo se escondendo das ciganas. Tocou sua vida com algumas vitórias expressivas e outras frustrações não menos expressivas.  O pai partiu, como partem todos. E lá se vão algumas décadas. Vez por outra se lembra das crenças de seu velho pai: praga de madrinha, praga de cigana, sorte e azar. 
Sorriu do medo que sentia naqueles outros tempos.

3 comentários:

  1. Essas ciganas pra mim não adivinham nada e não me põe medo... elas apenas fazem uso de palavras que são comuns a todas as pessoas. E ha aqueles q ficam impressionado pelo q ouvem e ai pronto... caem na "armadilha" delas.

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  2. Fez parte do imaginário infantil, do meu, de muita gente.O medo sempre como reação ao desconhecido. Povo sofrido, estigmatizado, com estilo de vida bem incomum. Não os vejo mais com a frequencia de antigamente...pque será????

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  3. Satisfação com a contribuição das amigas. Também não vejo mais os ciganos com frequência. Pessoalmente recebi muitos comentários sobre o medo imposto por pais e avós em relação a eles. Com certeza o preconceito causado pela desinformação.

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