05/01/2015

Velhas Convicções

A. Agostini, Escravos no Tronco,
 Revista Ilustrada, Século XIX
Houve um tempo em que era normal o guerreiro aprisionar o inimigo e submetê-lo aos tormentos que julgasse necessário. Torná-lo escravo era comum. Era aceitável mesmo eliminá-lo com um cirúrgico corte na garganta. Alguns, para mostrar a bravura do seu ato, expunham a cabeça do morto para que todos vissem de perto a macabra conquista.
Houve um tempo em que era normal a tortura como método de averiguação da verdade. Era uma forma aceitável e bastante prática de investigação. Como a carne é fraca e se trai diante da dor, como os músculos se comprimem e se distendem aumentando o sofrimento dos corpos e mesmo dos espíritos, os inventores foram sábios em criar instrumentos de tortura que brincavam com a fraqueza dos seres. Estudaram com engenhosidade as limitações humanas e, ardilosamente, desenvolveram uma maquinaria capaz de dobrar e corromper o mais duro dos homens. E, bingo, a ação sempre atingia o objetivo do torturador. Misteriosamente, o inquirido confessava. E mais, dedurava quem pudesse, arrastando outros tantos para o corredor da verdade.
Houve um tempo em que era normal amedrontar tantos quantos para garantir uma fé única. Uma única religião. Um único pensamento. E eliminou-se da divindade toda e qualquer bondade, todo e qualquer senso de justiça. Ele tornou-se, então, o Pai vingativo que marcava na paleta e na testa aqueles que faziam por merecer o castigo eterno. E os homens poderosos de então, tão diligentes, prestativos e dizendo-se autorizados pelo Impiedoso Criador, saíram por aí caçando todos aqueles que não tinham fé. E fé virou submissão. E a falta de fé na divindade escolhida por eles virou sinônimo de gargantas cortadas e de corpos estendidos.
Acreditem, houve um tempo em que o gênero humano era dividido entre aqueles que detinham direitos e os outros, desprovidos de qualquer virtude e de qualquer tutela. As mulheres, que carregam a vida no ventre, eram seres sem vez nem voz. Não valiam grande coisa. Não podiam participar dos processos democráticos, não tinham direito a uma convicção religiosa, nem ao próprio prazer. E, dentro deste contexto, era normal que o homem eliminasse a mulher. Que ela fosse sufocada no seu cantinho, de onde não era esperado que saísse. 
Houve um tempo que mesmo a cor da pele determinava quem era quem. E criaram-se raças. Homens brancos, homens puros. Pretos, pardos, amarelos e vermelhos eram animais. Poderiam ser aprisionados, escravizados. Nem alma tinham.
Felizmente, o tempo avança. E as convicções de ontem vão sendo superadas. As verdades antigas vão sendo derrogadas lentamente num processo interminável de renovação. Se causaram dor e sofrimento um dia, hoje causam alguma vergonha. Ao menos para quem gasta um tempinho de sua preciosa agenda pensando sobre questões tão espinhosas e, ainda assim, tão esquecidas.
Porém, não restam dúvidas que em alguns lugares do nosso planeta, ainda há guerreiros que cortam as cabeças que julgam necessárias, que profanam corpos com a tortura para chegar à verdade, que amedrontam para garantir a fé na sua divindade, que sufocam as mulheres, os negros, os pardos, os amarelos e os  vermelhos em nome de uma superioridade que não existe mais. 
Que nestes tempos novos, sejamos capazes, nós os humanos, de enterrar cada vez mais as velhas convicções dando espaço para novas verdades. Mesmo que, um dia, estas novas verdades se transformem em velhas convicções e devam passar novamente pelo processo de renovação numa ciranda que, em algum momento, levará a humanidade a outro estágio: o da sabedoria.

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