22/12/2015

O Cavalo do Padeiro

Tenho por costume publicar sempre crônicas inéditas neste espaço. Dia desses, porém, acessei a página de estatística de meu blog. Uma crônica publicada há cinco anos havia sido lida por alguém. Confesso que nem lembrava muito bem do texto. Entrei no blog e o li. É certo que em cinco anos muita coisa muda. Na velocidade que tudo acontece nos dias de hoje, as coisas se transformam dia após dia. Mas, mesmo tendo lido tantas coisas, passado por tantas experiências, mudado conceitos, assino embaixo do que escrevi naquele tempo. O texto é o seguinte:
“Não faz muito tempo, em algumas cidades havia o costume da entrega do pão de cada dia ser feita por uma carroça. O dito veículo, tracionado por um cavalo, transitava pelas ruas e parava de armazém em armazém, de venda em venda, de bolicho em bolicho. Na frente do estabelecimento o entregador deixava uma cesta de vime contendo os pães que seriam vendidos pelo comerciante durante o dia. O trabalho era estafante.

16/12/2015

A Aquarela


É inevitável, até mesmo clichê, conceber este período do ano como mais um ciclo que se fecha. Estes dias de Natal e de Ano Novo bem se assemelham à escalada de uma montanha. Chegamos no topo. Nem todos, é verdade: há os que ficaram pelo caminho, vencidos pelo cansaço do corpo, pela preguiça, pela falta de vontade, pela imobilidade voluntária ou não. Porém, em regra, superamos o que havia pela frente. O vento frio, o tempo ruim, as dores no corpo. Porém, o tempo para a contemplação dura muito pouco. Os olhos já notam que, ao longe, novos caminhos vão se abrindo no horizonte. Novos rumos vão se apresentando. Nem sempre de maneira cristalina. Mas, lá estão.

11/12/2015

Quando o apelo comercial corrompe

A atividade comercial praticamente nasceu com o homem. Segundo se diz, ela pode ter sido mesmo um fator determinante para o progresso, tendo em vista que a necessidade de consumo esteve por trás dos movimentos migratórios e, posteriormente, na produção em série que desenvolveu a indústria gerando empregos e investimentos pesados em novas máquinas e tecnologias.

04/12/2015

Coisas da Vila

A vila era pequena. Uma única rua de cascalho atravessava toda a extensão. Outras pequenas ruelas iam cortando a rua principal. As casas eram germinadas. As paredes finas. Os moradores ficavam muito próximos uns dos outros. A proximidade era tanta que se ouviam os barulhos dos talheres na hora do almoço ou da janta da casa ao lado. Falar alto era regra por ali. Desta forma, mesmo as conversas mais íntimas se tornavam públicas.  Os arroubos noturnos dos amantes podiam ser acompanhados  pelos vizinhos sempre atentos às novidades locais.

25/11/2015

Programa de tevê

Minha mãe não era adepta de televisão. Além do minguado orçamento doméstico que não permitia nenhum tipo de luxo, a bem da verdade,  às vezes, não era suficiente  nem mesmo para aquisição de coisas essenciais, ainda havia sua convicção religiosa. Sua religião, como muitas outras naqueles tempos, entendia que aquela janela proporcionava uma rápida viagem ao inferno. Tudo o que se passava naquela tela brilhante tinha o poder de cooptar a alma do vivente e levá-lo até os confins dominados pelo capeta e seus capangas. Jamais gostei da imagem do inferno. Mas, sempre senti uma forte atração pela programação televisiva. Isso que a programação naqueles tempos era coisa de criança.  O gato Tom correndo atrás de Jerry para transformá-lo em almoço.  O Coiote com mil planos para explodir, prensar, esmagar o Papa-Léguas (Bip-Bip). Tarzan enfrentando jacarés de cinco metros com uma faca e muita ginga.

17/11/2015

O Céu e o Inferno

O Céu- Os deuses realizam uma assembleia. O local onde se encontram é amplo. Limpo. Calmo. De rara beleza. Reina tranquilidade. Suave música pode ser ouvida por todos. Os tronos são claros. Moldam-se aos corpos das divindades. O céu está repleto. Os deuses vão deliberar sobre questões importantes.

14/11/2015

O treino e o jogo

Quem vê o atleta de alto rendimento correndo com esforço, superando seu limite e, finalmente, vibrando intensamente com a medalha no peito, não escapa à tentação de desejar a mesma glória. O hino do país tocando, a bandeira no alto, o nome e a marca no painel eletrônico. Câmeras e mais câmeras varrendo o corpo suado e o sorriso estampado no rosto. A camiseta e o calção colados. A torcida em festa. Entre os presentes misto de admiração e inveja. Sentimento mais do que comum. E aceitável.
A marca vencida e a barreira superada se fazem passado muito rapidamente. Vencer outras marcas, superar outras barreiras tornam-se os objetivos seguintes.

03/11/2015

Papo de Bar

Ilustração: João Werner
Todos os dias, no final de tarde, com chuva ou com o sol ainda mostrando-se graciosamente antes de ser engolido pela noite, ele dá expediente no boteco. Toma um liso, acende um cigarro. Espera o momento oportuno para proferir sua conhecida palestra. Eis que chega a sua vez. Como é de costume não desperdiça a oportunidade que lhe cabe.
 Com ar professoral analisa a postura da defesa do tricolor. E vai além, lembrando a inoperância do ataque colorado. Mostra com os dedos ainda sujos de argamassa a melhor forma de postar os homens de meio campo. Os dedos cansados e machucados pelo serviço do dia se tornam homenzinhos hábeis. Parecem dispostos a sair correndo trás de uma bola, a trombar com o meia armador habilidoso do time adversário, a fechar os espaços nas costas dos laterais que avançam e não têm fôlego para voltar. Pena que o treinador de seu time não vê isso, pensa. Tudo poderia ser melhor se o professor tivesse alguma lucidez e não fosse tão burro como se mostra nos últimos jogos. 

29/10/2015

Situações Extremas

Fonte da imagem
Os madeireiros cortam árvores na Sibéria. 10, 20, 30, 40 graus abaixo de zero.  Os pinus caem levantando neve para todos os lados. Trabalham duro. Não suam. Banho nem pensar. Um especialista adora percorrer pântanos atrás de jacarés. Outro, tenta fazer contato com leões em plena África. Uma dupla de especialistas viaja pelas florestas, pelos desertos e outros rincões mostrando técnicas de sobrevivência. Já sei bem: prioridade é a água, o fogo e capturar animais, pois proteína é fundamental nestes casos.
No Alasca, a briga é para ver quem levanta o maior dos atuns. Eu, na minha santa ignorância, imaginava que atum era um peixinho. Uma titiquinha de nada que depois de limpo era acondicionado numa latinha minúscula vendida no mercado entre R$ 3,50 e R$ 6,50. Para minha surpresa, recentemente fiquei sabendo que os atuns azuis pesam 180, 200, 250 quilos. São animais de 1,80 a 2,50 metros. Alguns, dependendo do teor de gordura e da qualidade da carne, podem valer até 45 dólares o quilo. Ou seja, um peixinho insignificante pode valer algo em torno de 5 mil dólares. Claro que a pesca é controlada. Há períodos e zonas estabelecidas e controle governamental. Apesar disso, nas águas geladas uma verdadeira guerra acontece para jogar linhas e capturar os monstrinhos.

28/10/2015

Fim de Tarde

Fonte imagem
No final da tarde, quando o sol se escondia e a escuridão da noite ameaçava tomar conta, a vovó, colocada providencialmente perto de uma janela aberta por onde entrava um ventinho que empurrava a cortina branca para lá e para cá, dizia para seus netinhos, do alto de suas décadas de existência: “a vida dá voltas e voltas e nada acontece por acaso neste vasto reino que se move lentamente”. Não havia porque ter medo. Porque o medo afasta o indivíduo do seu caminho. Ele torna a vida mais difícil. Ele é capaz de mudar as cores das coisas mais belas. Ele mostra perigo onde não há.   Ele inibe e impede o avanço.

E distribuía regularmente tantas mensagens no meio de histórias tão simples para aqueles olhinhos atentos. Os dias passavam com certa tranquilidade. A noite, então, era lenta. Parecia que não acabava  mais. Não havia tevê ali. Só um rádio antigo que captava mais chiado do que a voz, do que a música. Raramente era ligado para poupar luz.

19/10/2015

Fagulhas

O fogo que consome uma mata inteira pode ter como marco inicial uma simples fagulha. Um insistente raio de sol no mato seco, uma bagana de cigarro ou um estímulo outro qualquer podem iniciar um incêndio sem proporções. Consumir árvores, desalojar pássaros de seus ninhos, matar animais desatentos e organismos indefesos.  Basta que haja um ambiente propício. Calor, vegetação seca, falta de umidade. É o que se chama de causa primitiva.
Na natureza há sempre uma causa primitiva. Na vida dos homens não é diferente. Difícil é determinar qual delas dá início a uma determinada série de acontecimentos. Lembrei-me disso ao rever a história de um jogador de futebol agraciado pelo talento, pela determinação e envolto em acontecimentos que o levara à glória, mesmo tendo momentos de dissabores. 

22/09/2015

O Centroavante

Peito de Aço era um centroavante nato. Desses que não existem mais. Um Dadá Maravilha, um Serginho Chulapa. Era magro. Suas canelas eram finas. Não tinha panturrilhas. Apesar disso, seu corpo não vergava à ignorância dos zagueiros. Eu mesmo, um centromédio dos tempos antigos, com muita vontade e alguma inspiração, era muito mais forte do que ele. Mesmo assim cheguei a experimentar a sua força.
Jogávamos em times distintos naquela tarde.  O campo era o da Dona Guria, no Bairro Glória. Era um campo pequeno. Os times eram de três jogadores. Quatro no máximo. Era muito baixo. A grama era fofa e vivia molhada. As goleiras eram feitas de chinelos havaianas, de latas de azeite ou de camisetas. Eram goleiras móveis, o que gerava alguma discussão quando a bola arrastava a trave. Era gol ou não?  Foi por dentro ou por fora? Impossível saber. Não havia tira-teima.

20/09/2015

Bola de gude

Carregava um pote abarrotado de bolas de gude. O pote era pequeno. Mas isso não importava. Estava cheio até a boca. Azuladas, esverdeadas, leitosas. Só não havia bolão porque bolão não cabia no pote. As unhas eram sujas de terra e riscadas pelo constante atrito com a bolinha de vidro.  O polegar ostentava um calo de tanto empurrar a bolinha em direção às outras.
Certo dia, de maneira desavisada, olhei de perto minha joga preferida. E vi que dentro de sua imensidão uma nuvem se destacava. E olhando com mais cuidado notei que aquela nuvem tão pequena escondia planetas, sóis, luas, meteoros e meteoritos. E que, naqueles mundos tão distantes, meninos saiam de casa de maneira fugidia e se juntavam num terreno plano e arenoso. E traçavam no chão um círculo onde casavam suas bolitas. E riscavam uma linha alguns metros à frente. Jogavam com força calculada suas bolitas até a linha. Quem ficasse mais perto da risca teria a primazia da primeira jogada. E, às vezes, gastavam tempo enorme medindo imprecisamente os centímetros que separavam seus lances da marca. Se não houvesse acordo um árbitro era convocado para dirimir a contenda.

15/09/2015

Anotações

CINZA - O mundo às vezes é cinza. Sonegam-se as outras cores quando um menino que foge em busca de sossego, de um lugar para viver, encontra a morte no mar. Seu corpo frágil é o atestado de que o mundo é cinza. É deprimente o mundo quando alguém, fugindo em busca de paz, é perseguido, agredido e tem seu corpo queimado. O mundo é cinza quando o que separa os homens são a cor da pele, o sentimento religioso ou a conotação política. E cinza não tem tom. Não há prazer no cinza. Todo golpismo é cinza, toda a intolerância é cinza. E cinza é o tom da moda. Infelizmente. 

TEMPO- Dizem do alto de seus saberes que o tempo a tudo cura. Na realidade, o tempo não cura. A cura não é de sua natureza. Ele só avança. Deixa para trás o anteontem e o ontem. Com rara competência o tempo passa. E como passa. Avança no amanhã. Lentamente vai se afastando do que se viveu. Ele só passa. Sem medo. Sem trégua.

LATIDOS- São cinco horas da manhã. Não há vento. Não resta barulho lá fora.  O cão late. Insistentemente. A cidade dorme. Não dá ouvidos para o cão. Talvez seu latido seja uma resposta a um semelhante que se manifesta lá longe.  É madrugada e os carros estão parados. Os sons estão desligados. Vigilantes, guardas e insones não dormem. Seguram seus olhos pesados.  O cãozinho é do vizinho que dorme. E o som enche a rua. Se espalha fazendo eco. É madrugada. E o latido invade o sonho do menino que dorme. 

TORTA FRIA-  Um torta fria salgada é uma destas engenhosidades que só podem ter sido gerada por uma senhora altamente dotada de censo de improviso. Posso até vê-la abrindo a geladeira e juntando os restinhos disso e daquilo. Uma camada de pão, tomate picadinho, milho, cenoura ralada, camada de maionese, camada de pão, um resto de franguinho desfiado, mais tomate, cenoura, maionese, mais uma camada de pão e maionese para cobrir. Um ramo de salsa jogado despretensiosamente.  Está pronta a obra.  Não é que fica bom esse negócio!?

14/09/2015

O Baile

"Olha que isso aqui tá muito bom..."
De longe se notava um alvoroço. Não dava para distinguir muito bem o que era.  Os carros iam parando. O trânsito se tornava lento. Num certo momento tudo parou.
 “Queremos nossos salários. Queremos nossos salários, queremos nossos salários”, gritavam no meio da estrada interrompida os trabalhadores. Preocupados, ostentavam faixas e cartazes mais ou menos agressivos, mas todos indignados. Num deles, o governante dança alegremente como se estivesse em um salão de baile. “Olha, que isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais; olha, quem tá fora quer entrar, mas que tá dentro não sai.

02/09/2015

Façanhas

Houve um tempo em que tudo aqui era melhor que no resto do país. Nossa polícia era melhor do país. A saúde era a melhor do país.  Nossa assembleia era a melhor do país. O povo daqui era o mais politizado. O mais culto. Tudo, tudo mesmo era melhor. O gaúcho vivia repetindo isso incessantemente. E, tal qual a mentira repetida inúmeras vezes, a sentença transitou em julgado. E a doce ilusão virou verdade.

25/08/2015

O Mapa múndi

O mundo aberto em frente aos nosso olhos parecia uma colcha de retalhos. Multicolorido, plano. O artesão, no entanto, não havia cortado os pedacinhos com esmero. Parecia que o tecido havia sido rasgado de qualquer jeito. Havia pedaços maiores, pedacinhos menores. Sutis linhas pretas separavam os pedaços. Uns riscos azulados corriam para cima e para baixo. Longas extensões azuladas destacavam-se.
Nas cabecinhas da terceira ou da quarta série, parecia pouco provável que aquela folha colorida fosse capaz de abrigar rios límpidos e cheios de vida, lagos congelados aguardando a chegada da primavera, montanhas que subiam em direção aos céus, florestas onde se escondiam sacis, iaras, lobisomens e mulas sem cabeça, cidades inteiras onde meninos corriam nos campinhos atrás de uma bola murcha ou nas ruas calçadas entre os raros carros que passavam, onde meninas pulavam de corda e as mães limpavam casas e colocavam a roupa no varal e, vez por outra, sapecavam uma varada nas pernas do moleque mal educado e linguarudo. Era difícil entender como cabia tanta gente, tanta coisa. Era impossível imaginar que naquele pedaço pequeno de papel carros vermelhos, azuis, verdes ou raramente brancos seguissem em fila pela estrada de piche em direção ao litoral.

24/08/2015

A Isca

Um dos termos mais usados nos últimos tempos na mídia, na rodinha de café, na de chimarrão ou na mesa de bares, entre uma cerveja e outra, entre um petisco e outro, entre uma risada e outra, é corrupção. Há um forte apelo para condenar todos quantos corruptos forem encontrados no solo pátrio. Saudável, isso. Desejável, com certeza. Porém, como tantos termos que são usados com tanta insistência, a expressão vai se desgastando. No caso específico, podemos afirmar com a mais firme das convicções: todos sabem exatamente o que é corrupção. Mas, convenhamos a maioria não conhece a extensão que o termo carrega.

11/08/2015

Baile de Máscaras

O calmo e silencioso bem que pode guardar dentro de si um vulcão. Dominado durante o dia, escanteado pelas tarefas improrrogáveis, abafado pelos afazeres comuns, lentamente vai se mostrando. E, imperceptivelmente, se prepara para virar o jogo. E é à noite, quando tudo o quanto é rotina se esconde, quando os sons são raros e o tempo aparentemente deu uma trégua, que a lavra fervilha.  O estômago esquenta, as pernas parecem pegar fogo. Aí não há sono que apareça Não há calma e tranquilidade que resistam. De nada adianta contar carneirinhos nem vacas nem pássaros nem elefantes nem sementes de milho ou de feijão. Não há criatividade nem técnica que esfrie o calor que vem de dentro, acendendo fogos que bem pareciam cinzas de um passado tão distante.
O frenético e agitado, visto assim pelos olhos dos outros, bem que pode guardar dentro de si um lago de águas límpidas, mansas e pacíficas. E, tão logo saído das lides diárias, pode fechar a porta de casa e se entregar à tranquilidade que o transborda. Aí não haverá tempestade que o faça tremer nem ventos que o tirem do prumo nem surpresas que o tire do rumo.
Quando a multidão caminha cada um é apenas multidão. Não há um rosto, não há uma identidade. Há a multidão tão somente. Uma massa uniforme que se move num só sentido. A soma de todos os que caminham por ali.  Porém, o olhar mais atento, identificará que a unidade não existe. São seres, são indivíduos, são histórias únicas que se movem. No entanto, sem tempo para dizer “ei, eu sou assim”, “ei eu sou assado”. O calmo e silencioso que carrega um vulcão dentro de si ou o frenético e agitado que guarda silencioso lago nas suas entranhas caminham como tanto outros. A multidão os engole no dia a dia.
A imagem é clara. Não sei quem disse, mas quem disse isso certamente o fez com sabedoria: os indivíduos constroem suas máscaras ao longo dos tempos. No público apresentam o que de melhor produziram. No particular, no entanto, jogam a máscara de lado e viram vulcões ou lagos, mostram os dentes de raiva ou impulsionados por um sorriso leve e verdadeiro.
De algum modo, o dia a dia é um baile de máscaras. E os mascarados caminham para lá e para cá. E se misturam com a multidão, formando uma só massa. Vulcões e lagos trilhando lado a lado os caminhos que lhes cabem.      

04/08/2015

O Jardineiro

A turma recebeu a tarefa de produzir um trabalho em grupo. Os grupos foram cuidadosamente separados pelo professor. Os alunos, de quinta ou sexta série,  tinham liberdade total para criar a partir de determinado tema. Jogral, que invariavelmente caminhava para o rotundo fracasso;  distribuição de impressos em mimeógrafos, que agradava a todos menos pelo conteúdo, mais pelo forte cheiro de álcool que inebriava toda a classe; coreografias das mais diversas, que, em regra, mais constrangimento causavam do que prazer aos artistas e mesmos aos diletos expectadores.
Nosso grupo, não sei porque raios, escolheu fazer alguma coisa parecida com o teatro. Não era uma peça, pois o tempo era diminuto. Era um esquete. Alguém assumiu a coordenação. Um ou dois outros se puseram a bolar toda a trama a ser representada. Algumas poucas reuniões foram realizadas. Sei que chegou num determinado momento e tudo estava rigorosamente pronto. Não abri a boca nas reuniões nem fiz exigências quanto ao papel que me caberia. Pelo contrário, intimamente minha timidez torcia para que de algum modo a tarefa fosse cancelada e não necessitássemos de uma exposição que antevia seria um grande desastre.
Ficou estabelecido que alguns colegas produziriam algumas coisas em casa. O cenário ficou para alguém, a sonografia ficou para outro, os figurino e assim por diante. Certo que faltou supervisão.
No dia marcado para a apresentação, o grupo foi se postando no local determinado. O nervosismo era visível. E aumentava ainda mais quando fomos constatando que não havia nada de cenário, nada de sonografia e nada de figurino. Como a tragédia não era pequena, constatou-se, ainda, que alguns membros do grupo não tinham sequer falas. Eu era um deles. E aí foi aquela correria para a improvisação. Lembro que não havendo como incluir novos personagens naquela bagunça coube-me o nobre papel de jardineiro. Sim, jardineiro. Só que não havia ancinho nem tesoura nem pazinha.  Flores então, nem pensar.
E o tal esquete foi apresentado com notável falta de entusiamo no grupo e na plateia. E não falei palavra. E não ouvi aplausos. Só alguns risos verdadeiros. E o professor, que dava a nota na hora, considerou aquilo tudo um lixo. E ainda falou abertamente do desgraçado do jardineiro que além de não falar nada, ainda ficou de costas para o público, algo totalmente contra a boa arte da representação.
Se o vexame coletivo marcou de algum modo minha existência estudantil, não foi suficiente para eliminar a minha admiração pelas pessoas que conseguem com maestria, com gestos simples e leves tornar o mundo (muitas vezes cinzento demais) em algo mais colorido, mais belo e aprazível. 
                       
                       

                           

30/07/2015

Dona Carochinha

Dona Carochinha mora na floresta. Vive cercada por outros bichinhos. Convenhamos, bichinhos é modo de falar. Ela vive cercada de outros tantos pequenos como ela, não tão pequenos quanto ela e outros, maiores, muito maiores, do que ela.  Ela é uma doce pessoa. E se mistura com os pequenos, os médios e os grandes. E, como se mistura fácil, fica sabendo o que acontece em todos os lugares. Mas, Dona Carochinha não se contém em saber. Ela é mestra, também, em divulgar o que sabe.
De certo modo, Dona Carochinha transforma tudo o que sabe em fato público.  Algumas vezes tudo fica por isso mesmo. Os envolvidos não dão bola e tudo fica na paz. “Ora, isso só pode ser coisa da Dona Carochinha!', diz alguém. “Essa Dona Carochinha não tem jeito, mesmo. Uma hora ela vai entrar numa grande confusão!”, diz outro. Assim, tudo ia às mil maravilhas. As confusões eram de pequena monta. E os prejudicados não buscavam grande aprofundamento. Sabiam que Dona Carochinha era uma exagerada. Acabava misturando fatos verdadeiros com ficção, com seus sentimentos e com suas fantasias. Ocorre que chegou alguém novo na floresta. Não conhecia Dona Carochinha nem fora apresentado ainda à sua mania de compartilhar as coisas.
Dona Carochinha não tinha muita noção do perigo. E foi justamente bisbilhotar o novo morador. E saiu, como de costume, a ouvir tudo o que sabia sobre ele. Quando chegava em casa, o que fazia pela manhã, o que fazia pela tarde e assim foi montando o perfil do indivíduo. E pesquisando sua rede social foi criando o personagem. E saiu por aí a dar notícias a todos que encontrava. Parava na calçada e gastava bom tempo na ladainha. E saía dali e ia ao cabeleireiro (quem disse que na floresta em questão não existem vaidades?). E onde há vaidades há um cabeleireiro à disposição. E enquanto arrumava as madeixas, despejava tudo o que sabia. Mal tinha tempo para respirar de tal forma que sentia mesmo certa falta de ar. As bochechas ficavam vermelhas, a voz parecia que ia sumir.
Dava um tempo para que um pouquinho de ar fosse renovado nos pulmões e desatava novamente em franca conversa. Debulhava o que sabia, o que não sabia e o que nunca saberia. Largava o verdadeiro, o possível e até o impossível. Ocorre que o confidente nem sempre era o mais indicado. E ele, tal qual Dona Carochinha, era dado à difusão do conhecimento. E gastou o dia a noticiar o que soubera sobre o novo morador. E a floresta toda começou a conversar. Até que chegou nos ouvidos do dito cujo.

E o dito cujo não era de brincadeira. Procurou Dona Carochinha.  E, tão logo a encontrou, pisoteou o que pode. Dona Carochinha em segundos se viu diante de uma inteligência suprema da floresta. E, ainda sentindo as dores no corpo, perguntou o que houve. “Ocorre que ganhastes o dom da informação. Tudo chega em ti. Porém, nem tudo o que sabes deve ser dito. Aproveita o conhecimento para te fortalecer nunca para reduzir o outro”, disse o sábio. 

23/07/2015

Da chuva e do sol

Chove. Venta um pouco. Raios iluminam a noite escura. A luz entra pela janela. Os trovões acordam aqueles que tentam dormir. Chove novamente. O inverno avança. A temperatura cai. Vez por outra se juntam chuva, vento, raios e trovões e assustam as meninas e os meninos que cobrem a cabeça com o cobertor. Não há cobertor que resista à forte luz dos raios e ao barulho ensurdecedor dos trovões. No  passado diziam os avós aos netos que o barulho era porque São Pedro jogava bolão no céu. Esperava-se o barulho dos pinos caindo e sendo erguidos pelo mecanismo. Mas, nada! Só a pesada bola correndo pela pista.
E num som mais estridente, alguém corre para tirar a tevê, o micro-ondas e o som da tomada. A avó se vê dizendo em tom de mantra  "Santa Bárbara, São Jerônimo; Santa Bárbara, São Jerônimo".
É inverno no Sul. A água da chuva toma conta dos pátios, das casas, das ruas, dos bairros e das cidades. Afasta as pessoas de suas casas. Vira manchete de telejornal. Rio sobe e desabriga pessoas. Forte chuva derruba postes. Falta água aqui e acolá. Céus! Onde estamos?
Eis que o sol, que esteve tão preguiçoso por um bom tempo, coloca as manguinhas de fora. No começo tímido se esconde atrás de nuvens pesadas. Sol e chuva, casamento de viúva. A água vence e atemoriza de novo. E vira o assunto do dia. “Quando vai parar de chover?”. Difícil encontrar alguém que não pergunte isso. Difícil quem não arrisque um palpite: “parece que amanhã ela vai embora!”.
Os meses passam e chega a seca. E a chuva quando virá? Que calor! Tá tudo seco, precisando de uma chuva. E os telejornais falarão dos dias de sol e da falta que a chuva faz. E da soja que morreu. E do feijão que não prosperou. E do gado que não tem água. E da quebra na produção do leite e da carne. E do aumento dos preços do tomate e do alface. E alguns chorarão na tevê pelo prejuízo que tiveram. E todos ficarão tristes porque a tristeza estará no ar.
E a chuva chegará e lavará as calçadas. E será suficiente em algumas áreas e faltará ainda em outras. E os dias seguirão como devem seguir. E nem todos ficarão contentes. Alguns resmungarão uma falta aqui outra acolá. Mas isso não será notícia no telejornal. Para aparecer na tevê tem que ter impacto. A impaciência de um só não é notícia. A infelicidade de um só não dá ibope.

                                               

19/07/2015

Arroz com leite

Tenho uma querida amiga que adora arroz com leite. Arroz doce, dizem alguns. Não importa. Vez por outra, ela posta nas redes sociais pedidos de arroz com leite. E não é que vez de vez em quando ela recebe em sua  loja algum visita trazendo uma provinha da iguaria. E, publicamente, agradece o agrado, abrindo brechas para futuras ações semelhantes.
Tenho uma amiga que não tolera arroz com leite. Ela é vegana. E, como se sabe, não consome produtos oriundos de animais. Nem mesmo um gostoso arroz com leite, caprichosamente feito com cravo e canela, coberto por um porção generosa de canela em pó, a seduz. Pensa menos na satisfação gustativa e mais no sofrimento causado aos animais pelos exploradores humanos.
Polêmica à parte, dia desses me aventurei a tentar imitar minha mãe, que enquanto esteve aqui neste pequeno e limitado mundinho, foi uma mestra na arte de tentar agradar seus filhos. E o arroz com leite, simples e gostoso, era uma das fórmulas que lançava mão de vez em quando.
Como não disponho de tantas informações culinárias em meu currículo, como todos  os reles mortais de nosso tempo, busquei na internet algumas receitas. Jamais imaginei que algo tão simples fosse variar tanto. Há tentativas das mais diversas, incluindo coisas requintadas e rebuscadas, tentando tornar o simples em algo classudo. É claro que os gostos variam de acordo com a região do país. Há os que apostam no leite de coco, nas doses cavalares de açúcar e em um ou outro ingrediente.
O certo é que a primeira tentativa não foi digna de elogios. Por um capricho do destino ou, para ser mais correto, por um erro do cozinheiro, arroz, leite e açúcar não se entenderam na panela. E o gracioso arroz com leite ganhou uma consistência estranha, especialmente quando acondicionado num pratinho e colocado na geladeira. Nunca vi arroz tão endurecido. Para aumentar a maldade, sugou o leite que o cobria.   
Nova tentativa fiz dia desses. Aumentei o tempo de cozimento do arroz, reduzi consideravelmente a quantidade de açúcar e de leite. E o resultado foi um pouco melhor. Um pouco melhor, eu disse. Nada de espetacular, como era minha expectativa. Como entendo que devemos ser caridosos conosco mesmos, resignei-me. Não fiquei matutando muito sobre a frustração causada pela aventura culinária. Uma xícara de café preto ajudou a mascarar um ou outro defeito.
E vamos à luta que não dá para parar. Dia desses vou tentar de novo. Quem sabe a insistência não seja uma lição a ser aprendida. E aí, quem sabe, possa reservar uma porção para presentear minha querida amiga, sem medo de causar algum mal-estar.  

09/07/2015

Conversa fiada

Iniciar uma conversa fiada é uma das tarefas mais fáceis. Basta que se jogue aleatoriamente ao céu algum assunto. Qualquer um. Sério, como a crise na Grécia; divertido, como a repercussão na rede social de alguma baboseira qualquer; científico, como a múltipla existência dos seres e seus processos de aperfeiçoamento ao longo das etapas vivenciais ou o insuperável chavão masculino sobre o desempenho dos times do Estado na tabela do Brasileirão. Enfim, se a inspiração for por demais rasteira, basta que se lance mão do velho e surrado tempo. Vai chover? Vai parar de ventar? Como o tempo passa depressa, né? Parece que foi ontem que o ano começou, não é? E a semana? Passa sem que a gente sinta. Mal termina a música do Fantástico e já é sexta-feira. Parece que tudo está correndo. Não se nota o dia passar, a semana, o mês e o ano.
Alguém que, por ventura vai passando por ali, interessado no assunto que pescou no ar, valendo-se de seus conhecimentos filosóficos pode mesmo dizer: “o tempo não existe”. E emendar outras assertivas complexas, porém lógicas. “O tempo é mera abstração. É uma invenção humana. Vivemos todos uma realidade fictícia, virtual. Criamos o relógio para aprisionar o tempo. Porém,  ele foge, ele não se contém, ele não respeita nossa vontade”.
A conversa fiada não requer métodos. Vale perguntar e responder, vale indagar coisas desconexas na mesma conversação. Enfim, tudo tem algum sentido no aparente caos.  Ela é sedutora. Pode mesmo vencer o limitado círculo imposto pela geografia. Não é incomum que a conversa fiada de um grupo avance e ganhe vida. E conquiste outros adeptos, até então imunes ao blá-blá-blá alheio.
Pensando melhor: uma conversa fiada, iniciada assim de maneira despretensiosa com o sutil objetivo de distrair o tempo, de romper o silêncio ou preencher o vazio, na realidade, pode derivar sim para outro terreno. Este mais denso e mais sério.  Basta que passe por ali um destes apaixonados pelas questões filosóficas, espirituais ou transcendentais, que levam a sério até mesmo  singelas fórmulas antigas como “como vais?”, “tudo bem?”.
Aí, já é outra conversa. Deixa de ser uma simples conversa fiada para se transformar numa conversa afiada. 

04/07/2015

A Ira

No princípio, as redes sociais tinham como objetivo conectar as pessoas. Assim, através de meia dúzia de pesquisas descobriam-se colegas de ginásio, vizinhos antigos que tinham partido e não davam mais notícias há anos ou décadas. Talvez um antigo amor que se perdeu no tempo e no espaço. Membros da família que tinham se desgarrado. Foi uma verdadeira revolução de costumes. Era a descoberta de uma ferramenta de fácil utilização. O finado Orkut, que durou 10 anos, foi a pré-escola das redes sociais. Compartilhar fotos da infância e os acontecimentos mais marcantes da semana era o que se queria. Assim, a rede era pouco mais que um álbum de fotos. O ápice foi a criação de comunidades com seus nomes e objetivos estranhos. Sem contar na possibilidade de manter uma agenda atualizada com os aniversários dos amigos mais próximos e dos nem tão próximos assim.
Os tempos hoje são bem outros. É claro que muitos se valem das redes atuais no mesmo intuito do primitivo Orkut. Desejam encontrar pessoas, estabelecer contatos, compartilhar seus momentos mais felizes e, em alguns casos, expor suas lamúrias, suas contrariedades e estranhezas. 
Porém, às vezes, o mundo virtual tem se transformado em ringue. O hábito de compartilhar e comentar nas redes sociais pode virar um tormento. Verdadeiras guerras têm se estabelecido por coisas que não são assim tão importantes. Dedos nervosos estão, em muitos desses casos, a serviço da intolerância, da discórdia e de uma boa briga. E o que apimenta o ambiente são as questões relacionadas à religião, à política e ao futebol.
Em relação à religião sabemos que todos os livros sagrados e todas as filosofias de vida pregam com todas as palavras como ponto forte para o crescimento espiritual dos seres a tolerância. Ou seja, aceitar o outro com suas características próprias. A pauleira come solta exatamente porque os internautas se colocam como deuses e do alto de suas sabedorias começam a determinar exatamente o que cabe e o que não cabe. E um bate papo banal vira um caldeirão de xingamentos. E, no final das contas, a raiva vence.
Neste ambiente irado prospera também a intolerância política. Notícias falsas, ódios represados, interesses conflitantes vão gerando intrigas e mais intrigas. Noto que amigos calmos, tranquilos e, aparentemente equilibrados, transformam-se em gladiadores no mundo virtual. Seus dedos lançam mísseis que tendem a eliminar o argumento do outro, transformando a rede social numa guerra desnecessária.
É óbvio que este ambiente bélico faz mal à saúde. Há estudos científicos indicando que estes
comentários irados atingem o humor do indivíduo. Por conta disso, tenho reduzido ao máximo o tempo gasto no mundo virtual. Muito embora seja inevitável o acesso às redes sociais nos dias atuais, ninguém é obrigado a respirar este ar tóxico. Buscar um ar mais saudável é uma obrigação que me imponho.    

Mais sobre o tema:
Estudo sobre expressar raiva
Intolerância nas redes sociais

25/06/2015

Perguntas e respostas

Quanto mais o homem aprofunda sua pesquisa sobre a existência, mais perguntas surgem. O universo, visto no passado como a única fronteira possível, já não contém tudo o que existe. O olhar já está ultrapassando suas paredes. O cientistas estão loucos para explorar os mistérios que se escondem depois da luz. Há milhões de teorias, teses e ideias (no mais das vezes sem comprovações) sobre a vida e a morte dos homens, dos planetas e dos sistemas. As viagens vão se tornando maiores e, com isso, as perguntas, contrariando o que se imaginava, ao invés de receberem respostas concretas e acabadas vão se tornando mais complexas e inalcançáveis.
Alguém que esteja lendo isto tudo pode estar pensando: que se quer abordando estas coisas assim tão distantes? Para que esforço mental tamanho se há coisinhas menores e mais preocupantes nestes tempos de crise econômica e moral?
Com razão lembrará que existem questões muito mais prementes a serem tratadas nas páginas de um jornal como, por exemplo, os casos de corrupção que envolvem numa mesma lama esquerdistas, centristas e direitistas. Todos com um único pensamento: garantir o poder, o conforto seu e das gerações que os seguirão.
Há outros assuntos tão palpitantes, é verdade. A qualidade dos alimentos que levamos à boca. O sofrimento dos animais que servem de alimento, de cobaia de laboratório para desenvolvimento de medicamentos etc etc etc. As manipulações genéticas que transformam singelos vegetais em bombas de efeitos incalculáveis, desconhecidos e convenientemente esquecidos pela mídia, regiamente financiada pela indústria alimentícia. Enfim, não precisamos de tanto esforço assim para elencar três ou quatro questões importantes, sem solução e altamente preocupantes. Isto que nem tocamos na questão dos recursos naturais que antes pareciam inesgotáveis, mas hoje se revelam passíveis de esgotamento.  
Talvez a espécie humana não viva tanto para encontrar todas as respostas. Há quem aposte que o homem, como os animais que vão se tornando raros e depois desaparecem, é mais um que entrará, mais dia menos dia, num processo de extinção. Ou seja, há teorias que dizem que o homem não é o suprassumo do universo. Não é,como se diz vulgarmente, a última bolachinha do pacote. É, isto sim, mais um entre tantas espécies de vida que existem por aí. Muitas delas invisíveis aos olhos humanos.
 Mas, e o universo? E as questões transcendentais? E futuro da espécie? E as dimensões paralelas?  E o multiverso? Conseguirá o homem encontrar respostas plausíveis para as intrincadas questões? Ou permanecerão mistérios insondáveis para todo o sempre?
Veremos. Ou não!


O queijo

Contam por aqui que nos idos dos anos 70, um espertalhão conhecido na paróquia saia pela região vacinando os cães contra a raiva. Quando ele chegava era um verdadeiro alvoroço. Todos queriam receber as doses milagrosas que garantiam a saúde de seus amados bichos. Os meninos eram convocados a correr atrás dos totós para trazê-los à presença do dito sujeito. 
Porém, ao que consta o esforço dos meninos era em vão. Gastavam energia correndo atrás dos bichinhos mais ariscos. Alguns se embrenhavam nas matas. Outros entravam para debaixo das casas de madeira. Assustados com o movimento não queriam a proximidade de ninguém. Sorte dos que fugiam das picadas das agulhas do indivíduo. Os bichinhos não eram imunizados. Afinal de contas, água e sabão servem para lavar as mãos, a roupa. Não salvam os cães da raiva.   
Nem sei se a história é verdadeira ou faz parte do folclore regional. Uma coisa sei: o que fazia o estelionatário naqueles tempos, diante do repertório inesgotável de falcatruas, pode  hoje ser considerada uma  brincadeira infantil. Nestes pagos, que em princípio parece ser habitado tão somente por seres trabalhadores, honestos e exemplos para “o resto” do país, tem aparecido cada coisinha capaz de deixar o mais desavergonhado dos seres com cabelos em pé ou com o rosto vermelho de vergonha.
Há alguns anos, descobriu-se que a bebida típica do Rio Grande, a venerada erva-mate que chegava embalada nos supermercados, recebia doses de um sem número de folhas de outras árvores não tão nobres, mas abundantes. A erva batizada foi um escândalo. Os ervateiros se defenderam. Tocaram rótulos. Criaram outras empresas, outras marcas e tudo caiu no esquecimento.
Agora, faz pouco, descobriu-se que o leite nosso de cada dia sai da teta da vaca de um jeito e chega na xícara do vivente de outro. No meio do caminho vai recebendo aditivos: água, cal, formol e mais um monte de porcarias. Escândalo, prisões, multas etc etc etc. Aparentemente o caso foi superado. Aparentemente, eu disse! Na verdade, não há como evitar: sempre que vejo o tal do leite me dá a impressão de que aquele produto ali foi batizado. 
Gosto muito de queijo. Com goiabada, então, fica uma delícia. Pois não é que agora aparece esta falcatrua no processamento do queijo aqui na Colônia de São Pedro. O leite desprezado pela indústria virava queijo lá nas missões. Com gosto de gasolina. Vejam só: gasolina. Pode uma coisa dessas? Claro que pode. E pode muito mais: ainda faltam a nata, o iogurte, os lactobacilos, o requeijão e um monte de outros produtos que, em tese, saem do leite.
Ao levar algo à boca nem é bom pensar muito. A menos que consigamos produzir tudo o quanto precisamos para viver. O que, convenhamos, é quase impossível. Pensar às vezes dói, às vezes gera stress e ansiedade. As falcatruas estão no ar. Às vezes vêm dos locais mais improváveis. Às vezes não: vêm de onde esperamos.

10/06/2015

Realidades Paralelas

O guru diz que haverá um dia em que os mistérios serão todos revelados. Não fala claramente, assim com todas as palavras. Não é impositivo. Apenas sugere com delicadeza, com parcimônia. De modo cifrado, joga aos ouvintes pequenas notas que vão se juntando sem pressa. Sua voz é mansa. Não atropela as palavras que saem lentamente de sua boca. Cada um dos ouvintes, no entanto, vai montando o quebra-cabeças ao seu modo. E, a partir, criam-se realidades distintas.
Alguém ouve a mensagem e acredita que o guru diz claramente que finalmente um dia seu talento será reconhecido no trabalho. E aquele cargo que hoje é ocupado por seu desafeto será seu. Somente seu. E o salário, bem maior que o seu, fará uma diferença no final do mês. E a felicidade, então, se fará presente. E os dias do passado, tão tristes ficarão onde devem: no passado.

04/06/2015

Feijão e Arroz


Faz frio. Leonel caminha pela cidade. O vento é cortante. Passa pela sua jaqueta, pouco caso faz da camiseta. Sente súbita fraqueza. Também, já são 12 horas. Acordou cedo. Tomou um café ralo. Café com leite, um pedaço pequeno de mamão, um biscoito. E começou com as tarefas do dia.
Havia chovido. O apartamento tinha cheiro de queimado misturando-se com a umidade do dia inteiro de chuva. Borrifou para o alto uma essência de cravo e canela. Alguns minutos depois, o ranço venceu. Estava ainda de meias e pijama. “Disciplina é liberdade; compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem”, cantava Renato Russo no pequeno som na sala, espalhando sua dor, suas dúvidas, sofrimentos e paixões. Achou que a vizinha, uma senhora simpática, mas com certo ar triste, talvez não precisasse ouvir a música que escolheu. Reduziu o volume.

29/05/2015

A Era do Rádio

Final de tarde. O sol se retirava de cena vagarosamente. O calor ainda era grande, o vento era calmo. Estava sentado em um banquinho. Tinha talvez uns oito anos. Nove no máximo. O pai estava ao lado do rádio. Ouvia atentamente. A voz grave do locutor anunciava com sensacionalismo: “Daqui a pouco, importante entrevista com o mago fulano de tal que vai falar sobre o fim do mundo. Fiquem ligados. Daqui a pouco, depois dos comerciais”.
Sentia medo o menino.  Como assim? O mundinho iria acabar? A terra arenosa onde seus pés pisavam naqueles dias juvenis iria sumir? A bergamoteira em cujos galhos empoleirava-se tentando pegar a fruta maior, mais madura e mais doce desapareceria um dia? A goiabeira apinhada disputada ferrenhamente com os passarinhos também deixaria de existir? O mundo acabando assim desse jeito não fazia parte dos seus planos. A tarde caia e o radialista ia adiando a tal a entrevista aumentando ainda mais a angústia, a incerteza e a tensão que faziam o pequeno coração pular desordenadamente no peito. O pai deixou o rádio de lado e flagrou o medo no olhar do menino. Disse que não levasse as coisas tão a sério.  Que não seria a primeira nem a última vez que o mundo todo seria mexido por catástrofes.

A Voz

Sacerdote
Peça perdão ao sacerdote que é o legítimo representante da divindade e tudo estará bem. O mal será substituído por alguma prenda, a ordem será restabelecida e tudo continuará como deve. Submeta-se humildemente e a resposta positiva virá. E seus passos seguirão como se nada de mal houvesse ocorrido. Limpo e puro. Livre e solto. Os pecados, os deslizes, os erros ficarão num passado que será superado pelo milagre da representação.  O divino substituído pelo humano, legitimado, é claro, pela voz do além.
Porém, a voz não é ouvida por todos. Só por alguns. Muito poucos, aliás. Os eleitos, os escolhidos são iniciados na prática de escutar a Grande Voz que rege tudo o que há. E por isso são sábios, conhecem o certo e o errado e também as fórmulas para curar as máculas dos seres comuns.

23/05/2015

Vida e Morte: uma crônica canina

Ruivão
O Boby era muito engraçadinho. Seu pelo era claro. Seus olhos espertos. Era carinhoso, o Boby. Porém, apesar de afetivo com as crianças e com os adultos, ele não era só amor. Ele não gostava muito do Ruivão. Mas, por outro lado, tinha grande afetividade pelo Stallone.
O Stallone um dia fugiu de casa. O veículo da APAE o colheu. Ele fraturou o quadril. Bem cuidado, voltou a caminhar novamente. Não com a mesma naturalidade de sempre.  Ele ficou um pouco descontado. Ganhou até certa graça no caminhar. Alguma leveza que não tinha antes.
Certo dia acordei e dei falta do Boby. Ele já estava velho. Mal conseguia ficar em pé. Seus olhos tinham uma camada grossa de catarata. Já não enxergava mais. Mas, ainda atendia ao gritos dados da janela. Saí em sua procura e o encontrei encharcado. Havia chovido durante dois dias seguidos. Caído no chão, gemia. Não tinha forças para levantar. Tinha certeza que o correto seria sacrificá-lo. Porém, não tive coragem. Ao invés disso tomei a decisão de alimentá-lo constantemente com leite diretamente na boca. De vez em quando jogava com uma seringa um pouco de água para hidratá-lo. Não preciso dizer que um dia pela manhã o encontrei sem vida.
Coloquei o corpo imóvel no carrinho de mão e abri um buraco fundo. O Stallone acompanhou todo o processo. Estava muito triste, o Stallone. Feitas as homenagens de praxe, nossa vida voltou ao normal. Menos a do Stallone que enquanto viveu parecia lamentar a perda do amigo. Incontinente, deitava ao lado do carrinho de mão que servira de veículo fúnebre e gemia com sinceridade. Algum tempo depois, o Stallone também se foi. Ficou o Ruivão.
O Ruivão tem uma história curiosa. Diariamente ele ficava parado no portão da casa. Duas ou três vezes dei algum alimento e, após feita a refeição, o espantava para longe. Ele dava meia volta e se aninhava novamente no lugar. Um, dois, três dias seguidos. Diante de sua teimosia, meu coração acabou cedendo. O coloquei para dentro do pátio. E ele ficou sem reclamar. Nem fugir tentava.
Agora me avisam que sua vidinha está por um fio. Acometido de um tumor, de idade avançada e por outros problemas caninos, o Ruivão vai se despedindo. É possível mesmo que quando esta crônica for lida já esteja vivendo  no mundo espiritual da bicharada. É a vida que segue seu rumo sem descanso. Vale para todos nós, os humanos, para os cães e para tudo o quanto existe.  

06/05/2015

As Mães

Nas escolas infantis estes dias que antecedem ao Dia das Mães é de grande movimentação e expectativa. Os pequenos são estimulados pelas “tias” a preparar algumas surpresas para suas genitoras. São orientados a entregar a agenda para o pai que, desatento como sempre, não observará que dias antes deve mandar alguns trocados ou materiais para a confecção das surpresas. Nestes casos, a diligente mãe é quem providenciará tudo o quanto for necessário para a sua “surpresa”.
Sem contar as musiquinhas que os pimpolhos ficam tentando cantar pelos cantos da casa. Querem, de alguma forma, antecipar o conteúdo, mas como foram orientados para que não cantassem na presença da mamãe, ficam disfarçadamente treinando o canto. As mães, por sua vez, fingem que nada ouvem.
As coreografias constituem um capítulo à parte. Trôpegos ainda com estas coisas de coordenação motora, visivelmente não dominam seus corpos. E as “tias”, zelosas como nunca, incluem duas ou três ações simultâneas para a garotada. Se alguns adultos têm que optar entre caminhar e mascar chicletes, imagina os pequenos que têm que cantar e gesticular ao mesmo tempo. Claro que a intenção é das mais compreensíveis. É tudo treino. É tudo preparação.
Porém, não é incomum que um que outro desgarre do grupo e fuja do palco assustado com a complexidade da missão. Neste caso não faltará um colo de mãe a acolhê-lo. Convenhamos, como mãe é ser humano também (desculpe, mas às vezes a missão materna é tão exaltada que parece que todas são divindades), não é anormal que a mamãe do fujão questione: “será que este menino é normal?”.
Enfim, como diria aquele poeta sempre presente: são tantas emoções. Mas, todo o esforço vale a recompensa. No final das homenagens, mães retocam suas maquiagens visivelmente emocionadas com a performance dos pequeninos. Nem lembram que compraram as lembranças, que sabiam a música que seria cantada e que a gurizada agia desordenadamente no palco.
O choro das mães é sincero.

02/05/2015

O Olhar do Outro

Nossos olhos captam o movimento do mundo à nossa volta. E não estamos sós. Os olhos dos outros captam nossos movimentos. E assim, trocando olhares, vamos seguindo nosso caminho por aqui. Olhamos e somos olhados. E nossa imagem vai sendo medida. Nossos passos vão sendo analisados, sem maldade, sem interesse. Ou com maldade e com interesse.

Até que ponto o olhar do outro interfere no nosso dia a dia, no nosso modo de viver? Há quem diga que não se preocupa com o que os olhos dos outros captam. Será verdade?
Quando cursava Letras, na FACOS, participei de um curso de teatro. Os anos 80 estavam  no seu auge. Desejava aprender algo mais, algo novo. Queria algo que efetivamente contribuísse  de algum modo para construir um novo olhar sobre a realidade. E a realidade artística, convenhamos, é sedutora.

24/04/2015

O Divino Gol

O artilheiro gira com rapidez, engana o zagueiro e desfere um chute perfeito. A bola descreve uma curva, sobe e desce dentro do gol. O goleiro assiste a tudo. Nem tempo teve para esboçar alguma reação. Ficou pregado no chão. O treinador balança a cabeça. Se persistir assim será mais uma derrota. A quinta seguida. E seu emprego está ameaçado. Importa reagir. O clima fica pesado. A torcida  na arquibancada logo logo vai pedir sua cabeça. Ela quer a vitória. Ele também. Só a vitória interessa, sempre.
O artilheiro fecha os olhos e corre em direção à sua torcida. Levanta as mãos para os céus. Humildemente diz que seu gol não foi obra dele. Que não foram sua habilidade, seu treino, sua perspicácia nem seu talento os responsáveis pela bela obra. O gol foi da divindade. E corre gritando para as câmeras de tevê: “não fui eu, não fui eu, não fui eu!”. O grito da torcida abafa sua voz.

17/04/2015

Notícias da Capital

 
Aspecto da área central de Osório (1979).
Foto de Carlos Adib
A Ivete morava na Costa Gama. Era nossa amiga a Ivete. Conversávamos pouco, é verdade. Um oi aqui outro ali. A casa dela ficava no nosso trecho. Afundávamos a Costa Gama durante o dia. Íamos em direção a 15 de Novembro e no rumo da Escola Polivalente. Sempre um grupinho de três ou quatro. Conhecíamos a paisagem de cor e salteado. Qualquer mudança no panorama chamaria a nossa atenção. 
Um dia, talvez num final de tarde de verão, a Ivete estava na frenta da casa. Sentada no muro como sempre. Como sempre não, ela não estava só. E, de modo interesseiro, nos aproximamos com mais fervor que antes. E conversamos mais demoradamente com a Ivete. E ela apresentou sua prima. Ela vinha da Capital, o que aumentava o nosso interesse. Gente do interior admira quem vem da Capital. É como se fosse um estrangeiro. Na visão da gurizada daquela época, quem vinha da Capital sabia mais das coisas da vida. Vivia experiências diferentes. Enfim, quem vinha da Capital tinha o nosso respeito.

14/04/2015

O Mar de Galeano

Eduardo Galeano partiu nesta semana. O escritor uruguaio fará falta por aqui. Seu texto preciso, enxuto e certeiro, suas histórias de gente simples em momentos singelos e de rara beleza farão muita falta. Sua visão de mundo, tão particular, tão poética, capaz de captar o belo, a tristeza, a melancolia e a alegria em cenas triviais, por certo não será esquecida tão facilmente.
Lendo Galeano vez por outra me questiono: afinal, como pode enxergar o que enxerga de modo tão diferente? Como meus olhos não conseguem captar o que ele capta? Claro, cada um de nós vê o mundo não somente com os olhos. As imagens vão se misturando com os cheiros, sabores, sensações, sentimentos e instintos que são nossos, que foram granjeados ao longo de nossa caminhada. Toda esta mistura vai agindo de modo silencioso. E, a partir disso, vamos montando nosso mundinho. Território próprio e intransferível.

08/04/2015

O Sonhador

Se tem algo que Leonel faz, sem medo, sem dó e com frequência, é sonhar. E, vez por outra, aparece alguém que o acusa de sonhador. Ele não retruca e nem protagoniza grandes defesas. Cala. E sonha novamente.
Porém, apesar da sentença que repetidas vezes se impõe sobre sua cabeça, acredita firmemente que o que conta, no momento, é a imagem que se tem do sonho. Muito frequentemente se vê divagando que se encontrasse pela frente cinquenta arco-íris cinquenta vezes lembraria que existe um pote de ouro na sua base. Não adiantaria teoria científica nem longas pesquisas no Google. Instintivamente pensaria no pote de ouro. Pensaria no sonho, na magia, na lenda. Acreditaria sem pensar. Se racionalizasse, claro, o sonho deixaria de acontecer.

01/04/2015

As estradas

Nos tempos antigos, os locais mais distantes careciam de meios de acesso. As comunicações, por isso mesmo, eram difíceis. O progresso vinha a pé. As notícias envelheciam nas estradas empoeiradas. As visitações eram precárias. O mundo era lento. E o tempo, por isso tudo, transcorria sem tanta pressa.
Aqui, neste cantinho do mundo, que hoje chamamos de Rio Grande, charruas, tapuias, guaranis, kaingang e carijós amassavam com seus pés o mato nascente formando trilhas pelas quais se deslocavam em busca de caça e do sol. Não havia pressa nem pecado no Sul do Equador. Os homens de então viviam por aqui envolvidos nas suas atividades mais básicas. A ordem era viver sem pressa. Não suspeitavam que, na distante Europa, os romanos pavimentavam suas estradas com pedras regulares para que seus cavalos corressem arrastando as bigas por léguas e léguas. Lá havia pressa. O mundo por aqui era mais lento, mais primitivo.

26/03/2015

Dois Mundos

O mundo se movimenta além dos nossos olhos. Há atividade onde nossos sentidos não percebem. Onde não nos encontramos, aí há vida. O que não enxergamos pode existir. E, em regra existe mesmo!
Neste exato momento, imersos em nossas preocupações mais elementares, a vida segue lá fora. O mundo acontece. A história não para. Em Londres agora são quatro horas a mais, em Kiev são seis horas a mais; em Manila são onze horas a mais. Enquanto aqui nos encontramos é possível que nas zonas em conflito (e há tantas em nossa Terra), algum general esteja planejando a forma mais correta de lançar um míssil para atingir um adversário. É possível que um grupo de indivíduos, sintonizados com os interesses mais mesquinhos e egoísticos, estejam planejando o ataque terrorista que vai sensibilizar o mundo. E todos acreditam, sem qualquer porção de dúvida, de que têm razões suficientes que justificam seus atos.
Por outro lado, neste mesmo instante, em algum lugar, dois seres, valendo-se da energia criadora que se espalha pelo Universo se encontram nos prazerosos atos que darão origem a mais uma vida. Pode ocorrer, também, que, recolhidos no seu angustiante silêncio, deixem escorrer uma lágrima ouvindo Ray Charles cantando as agruras de uma paixão que terminou em Yesterday, dos Beatles.

17/03/2015

Os pepinos

Não gosto de pepinos. Não importa a forma como eles sejam apresentados: cortados com capricho numa salada com azeite de oliva e uma pitada de sal, em forma de conserva se acotovelando dentro de um vidro ou de alguma maneira extremamente criativa. Não gosto e ponto final. Isto que, em termos de alimentação, não costumo apresentar assim tanta frescura: não afasto quase nada. Qualquer pão com margarina ou singelo arroz com ovo, muitas vezes me satisfazem.
Como tudo na vida apresenta no mínimo uma explicação, creio que a implicância iniciou quando, ainda na infância, fui apresentado ao vegetal. Foi desamor à primeira vista. Ele foi servido em forma de salada. Apesar de cortado em rodelas milimetricamente calculadas pela minha mãe e parecer apetitoso aos olhos, confesso que não simpatizei muito com o tal do pepino. Ele, por sua vez, pareceu-me um tanto arrogante. Tanto que não tentou ser simpático.

12/03/2015

Autor e Obra

A discussão bem que não é nova. Mas, é interessante. Intrigante até, diria.
Recebi dia desses um e-mail de uma querida amiga. Alertava para o caráter imoral de alguns dos nossos imortais compositores brasileiros endeusados pela sua produção musical. Como todos os nomes da extensa lista são velhos conhecidos, me propus a ler a proposta apresentada no texto. O engraçado é que todos os indivíduos citados fazem parte do meu repertório. E, além disso, sem exceção estão mortos. E o texto era direto. Sua preocupação era ressaltar o que de ruim cada um apresentava na sua passagem por aqui. Um deles foi destacado pela promiscuidade de sua vida pessoal. Pela sua desatinada luta em busca do prazer. O vínculo com o álcool e com drogas mais pesadas serviu para adjetivar aquele encantador roqueiro, tão presente nos bares e nas festas, quando alguém inspirado pela lembrança de sua figura grita: - Toca Raul! O desapego para com a vida e os vícios que destruíram a mais bela das nossas vozes também foi lembrado. E assim sucessivamente foi o texto qualificando negativamente e derrubando os ícones da música tupiniquim. Não ficou nenhuma peça em pé no tabuleiro.

04/03/2015

Filhos de peixes

Woody Allen (arte sobre foto)
A mãe de Woody Allen nunca desejou um filho artista. Desejava, isto sim, que ele fosse um cara normal, que cursasse uma faculdade e que seguisse sua vida sendo infeliz como pudesse. Porém, Allen Sterwart Konigsberg nunca gostou de estudar. A escola era sua inimiga. E ele não fazia grandes concessões. Gostava de escrever. E para continuar anonimamente sua atividade prazerosa escolheu um pseudônimo. Escreveu roteiros para outros comediantes e foi empurrado para o palco , mesmo sendo desajeitado e não sabendo representar. Porém, depois de alguns pequenos sucessos e fracassos acabou se firmando como o mais legítimo representante do humor autodepreciativo, reflexivo e existencial contemporâneo.
O baiano Gilberto Gil tinha todas as ferramentas para ser um economista. E todos nós sabemos o quanto necessitamos de economistas, ainda nos dias de hoje. Passou no vestibular, matriculou-se na faculdade. Cursou algum tempo. Encontrou Caetano, Gal Costa, Tom Zé e Maria Bethânia. A faculdade foi arquivada. A economia ficou para trás. Felizmente para a música. Ainda hoje é um dos mais produtivos compositores e músicos do nosso querido torrão pátrio.

24/02/2015

Menino Feliz

O palmito é resistente, mas, ao mesmo tempo, é leve. Cede a uma mordida dos dentes de Leonel. O milho é doce. O pepino, que não gosta muito, até que faz um bom papel. A maionese dá o tom cremoso. E o pão é leve. Um pedaço de torta fria é o que lhe restou. Morde um naco e de sua boca sai um som estranho. Sua filha mais nova, se ali estivesse, reclamaria do som da resistência do palmito. Coisa feia mesmo. Mas, ninguém notou. Ou, se notou, não deu grande importância.
É sábado pela manhã. Leonel escolheu sentar numa das mesas do fundo. Pela porta vê centenas de pessoas que passam e não enxergam quem está dentro. “Por uns minutos me tornei invisível. Não fossem os olhos de um ou outro que tomam seu café ou água mineral, além das moças que atendem com dedicação e zelo, poderia estar nu. Do lado de fora ninguém notaria”, pensa. Ri da idiotia que o assola, enquanto nota que a taça de café com leite e a porção de torta fria vão sendo consumidas sem que perceba. Parece que evaporam da sua frente.

16/02/2015

Olívia Palito

Olívia Palito, personagem criado por
Elzie Crisler Segar, em 1919
As meninas magrinhas eram chamadas de Olívia Palito. As muito altas eram garças, girafas, coqueiro ou outra coisa que o valha. Os meninos com óculos eram invariavelmente denominados de Quatro Olhos. Se os óculos compensavam muitos graus de deficiência era comum serem chamados de fundo de garrafa. Os gordinhos eram Baleia Fora D´água. Os baixinhos eram anões de jardim, tampinha e outras denominações de estilo.
E tudo isso era muito normal, naquela época. Normal entre aspas. É claro que para quem não fazia parte do grupo da magreza, dos míopes e dos que lutavam contra a balança, a situação era uma. As olívias, as garças, girafas ou coqueiros, os quatro olhos, os tampinhas e os baleias não achavam tanta graça assim no tratamento jocoso. Não era mau humor não. Ocorre que sentiam na pele a dor de ser apontado por alguma característica sobre a qual não tinham qualquer possibilidade de mudança. Sofriam porque contrariavam o padrão estabelecido pelos outros de forma autoritária e despida de qualquer possibilidade de defesa.

11/02/2015

O sentimento que te anima

“Importa o sentimento que te anima”, foi a última frase que Leonel ouviu. Abriu os olhos, com resistente preguiça. O sol não aparecia com decisão. Nem os pássaros cantavam. Decerto descansavam ainda. Mesmo assim, conseguia ver a silhueta ao seu lado. Admirou as suas costas nuas. A escuridão, no entanto, impedia que visse sua nuca, seus cabelos e a pintinha escura nas costas. Dormiu mais dez, quinze, vinte ou trinta minutos, não sabia precisar.
Foi despertado por um rebelde raio de sol que teimosamente entrava por uma pequena fresta da janela. Ouviu ao longe o som das ondas. O mar está próximo. Levantou da cama. O quarto estava desarrumado. Um copo com um pouco de água no criado-mudo, travesseiro no chão. Uma camiseta jogada de qualquer jeito numa cadeira. Um carregador de telefone celular ligado na tomada sem o aparelho. Desperdício de energia, pensou. Mal lavou o rosto. Fez um rápido bochecho para tirar o hálito da noite. Vestiu uma bermuda surrada. Saiu do quarto.

03/02/2015

Picolés e sorvetes

Um dia acreditei que todos os pedreiros, ajudantes de obras e serventes de pedreiros mereciam um estágio prolongado no inferno. Não era maldade. Na verdade, tinha razões muito bem fundamentadas para chegar a esta conclusão. Era um rapaz de uns onze ou doze anos de idade. No final do mês de novembro, o sol começava a se mostrar cada vez mais presente, os cadernos e lápis já faziam parte do passado, então era tempo de se dirigir até a fábrica de picolés e sorvetes Milk Mony, do Seu Leopoldo. Ficava ali perto da Escola General Osório.

26/01/2015

A história de Adão e Eva

Adão e Eva, de Lucas Cranach,
Muitas histórias vêm sendo repetidas ao longo dos tempos. E cada um que conta coloca seus sais, açúcares e as porções de pimenta que julga necessário. Com isso, as histórias vão tomando o gosto do contador, as tramas vão se modificando e a realidade vai se tornando outra bem distinta da original. Um caso ocorrido no passado nunca mais será exatamente aquilo que ocorreu. Com a história que vou rememorar ocorreu exatamente isso: contada de geração para geração foi sendo modificada de tal forma que hoje ninguém mais tem certeza do que verdadeiramente aconteceu.
Me desculpe a falta de modéstia, mas, se puderes me dedicar um tempinho, conto exatamente o que ocorreu no paraíso sem tirar nem por. E faço isso não para me engrandecer, mas sim para restabelecer a verdade. Eis que a verdade do paraíso eu sei. E como estamos numa conversa franca e amiga, acho prudente me despir de qualquer preocupação com o discurso da falsa humildade. Seria bom não gastares seu tempo perguntando como fiquei sabendo, pois não revelarei. Sei que sei. Se quiseres acreditar em mim, tudo bem. Se serve assim, conto tudinho, nos mínimos detalhes. Combinado?
Então vamos lá.

14/01/2015

Praiana

Caminhamos pela praia. O sol já está indo embora.
Alguns meninos engalfinham-se na areia. Retorcem seus corpos. Se pegam, se puxam. Tentam imobilizar um ao outro. Alguns assistem à estranha luta. Riem. Apostam. Torcem.

O salva-vidas vai se retirando da guarita. Recolhe suas coisas. Desce por uma escada de madeira. E dá de costas ao mar. Não está nada interessado na dança protagonizada pelos corpos jovens na areia. Os meninos contimuam no infindável agarra-agarra. Ficam para trás. Não sei, afinal, quem ganhou a luta nem se houve vencedor.
A água é morna. O mar está surpreendentemente claro. Milhares de mariscos pequenos mortos formam um tapete sobre o qual caminhamos. Peixes de pequeno tamanho e com o corpo machucado foram trazidos para a beira. Um que outro apresentam tão somente os buracos dos olhos.