05/06/2014

Os degredados

Seu Amadeu é um homem vivido. Já morou na Alemanha durante décadas. Já viveu no Brasil durante alguns anos. Fala quatro idiomas. Vive na Europa. Admira o Brasil. Diz que é o país mais belo do mundo. Seu Amadeu não entende o Brasil. Não sabe como os brasileiros falam tão mal do seu próprio país. Como desdenham do seu país. Não entende como os brasileiros desprezam com tanta facilidade o chão em que vivem. Ele não é um privilegiado: o brasileiro não entende o Brasil.
Este é um fenômeno que parece ter nascido com o próprio país. O Brasil já existia quando foi invadido pelos colonizadores. Aqui já havia gente que aproveitava a sua maneira as potencialidades. Desfrutava das matas, dos rios cristalinos, do mar gelado do Sul, das águas quentes do Norte e do Nordeste. Gente que se perdia na mata infindável correndo dos sacis e do curupira.
No entanto, nada do que havia vale. A história começa quando chegaram por aqui os homens do Velho Mundo. A descoberta. E, tanto quanto o homem para a antiga religião, nosso país parece ter nascido devendo os tubos por causa de um pecado original. Pedro Álvares Cabral ao chegar abriu as galeras e despejou gente que não prestava para Portugal. E aqui os abandou à própria sorte. O país, virgem, recém descoberto, serviu de desterro aos condenados por crimes cometidos na civilização. Depois disso, navios cheios de criminosos sistematicamente chegaram ao país. Eram ladrões, estupradores, bígamos, visionários, feiticeiros e blasfemadores, ou seja, gente sem valia, desregrados de toda a ordem, certo? Este, pelo menos, é o conceito presente aqui no nosso país e também em Portugal.
Na realidade, hoje sabemos que o desterro era uma pena imposta pelos tribunais eclesiásticos da Inquisição (oh, Santa Inquisição da Santa Igreja que tanto mal causou à humanidade!). Afastemos de Cabral esta culpa, eis que somente a partir de 1536 é que o desterro aparece como pena em Portugal. Os que foram enviados para as terra de além-mar eram aqueles que se rebelavam contra a autoridade papal e contra o seu representante em Portugal, o Rei. Neste casamento infame entre religião e política, os tribunais inquisitoriais sentenciavam que os hereges deveriam, entre outras coisas, perder o direito de viver na própria pátria. A vida na Colônia durante um período de três a dez anos era tida pelos inquisidores como uma purgação dos pecados. A Terra Brasilis era o inferno na Terra.
Em regra os patrícios não se afeiçoavam ao Brasil. Um deles em especial, Dom Francisco Manuel de Melo, que vivia na Corte Portuguesa em Lisboa, mandava para o Velho Mundo seus poemas lamentando sua má sorte no país. Sonhava com os concertos, com a vida urbana e quente de Lisboa. Os batuques dos negros baianos, que dançavam lascivamente, perturbavam o circunspecto intelectual que tentava devorar livros e mais livros. Melo, galanteador de primeira, meteu-se de pato a ganso. Alguns autores afirmam que desafiou o próprio Rei para um duelo tendo em vista o interesse em uma rapariga que também era uma das preferidas do poderoso monarca. Além de levar uns puaços foi mandado para o Brasil. 
A ideia de que o Brasil serviu para Portugal como uma prisão sem celas é um exagero. Uma distorção. Geraldo Pieroni, estudioso português, em seu trabalho Os Excluídos do Reino, de 1997, denuncia o exagero histórico. Segundo ele, o Brasil como terra dos bandidos e malfeitores, como pátria da escória portuguesa é resultado da linguagem mais romanesca do que histórica de autores como Ruy Nash que afirmou: “quase tudo quanto Portugal fez pelo Brasil foi enviar duas caravelas por ano a vomitar em seu litoral esses resíduos da sociedade”.
É óbvio que diante de tanta informação tida como verdadeira, haveria repercussão nas análises que hoje fizemos sobre o Brasil. O complexo de vira-latas, a que se refere Nélson Rodrigues, talvez nasça daí. “Isto só acontece no Brasil” afirmam com autoridade brasileiros que jamais saíram dos limites de seus próprios quintais, diante de qualquer desacerto ou discordância em relação ao modus vivendi nacional.
Seu Amadeu, português de boa lábia, não entende como deixaremos de torcer pela nossa seleção. Desconfia que seja só por questão política. Quanto à roubalheira, aos desvios de dinheiro, diz que é assim mesmo que funciona. Suas queixas são as mesmas de nossa gente: corrupção, desvios de dinheiro público, superfaturamento nas obras, falta de recursos para a saúde, a educação e a previdência social. Seu Amadeu mora em Lisboa, mas não fala mal de Portugal. O Brasil, o país, o chão, a pátria são belíssimos. Os homens... Ah, os homens são o que são em Brasília e em Lisboa, em Porto Alegre ou em Coimbra. É o que pensa o Seu Amadeu.
Ele vai torcer para o Brasil. Isso se sua pátria, Portugal não chegar à final da Copa. Se, porém, os lusitanos enfrentarem o Brasil, o resultado será 3 a 2. Dois gols de Neymar e três de Cristiano Ronaldo.
Dilma, Aécio e outros tantos não marcarão gols. É o que pensa Seu Amadeu.

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