20/05/2014

O navegante

Azulejo do Palácio Queluz,
Lisboa, Portugal.
A Terra é chata. É plana. Quando os limites dos mares findarem, as embarcações cairão num profundo fosso e daí jamais voltarão. E com elas se vão os homens, sua coragem, seus sonhos e seus projetos. Não adianta desespero, não adianta luta nem qualquer reação. A verdade é essa. E ponto final.
Outros diziam que quando as águas rareavam, monstros gulosos levantavam-se e abriam suas bocas enormes e, sem esforço, engoliam todas as embarcações. Adeus navegação, adeus homens, adeus vida. Enfrentar as águas rudes do mar nos tempos antigos era uma viagem sem fim. Sem glória, sem qualquer possibilidade de vitória. Era a viagem definitiva, sem qualquer possibilidade de apelação. Era quase uma pena capital. Um suicídio que só os loucos e os desequilibrados poderiam cometer. Navegar era desprezar a vida. Era correr para a morte. Era entregar a alma aos monstros e daí jamais ser resgatado.
Imaginemos, amigo leitor, o temor, a angústia e todos os sentimentos ligados à insegurança que nossos antepassados enfrentavam quando tinham a necessidade de se distanciar um pouquinho que fosse da costa. Era preciso manter os pés na terra. Os mares não podiam ser dobrados. Eles eram supremos. Não era uma brincadeira para humanos.
Imaginemos o peso que carregavam em suas costas os navegantes quando um vento um pouco mais maroto forçava suas embarcações a invadir as águas sagradas de Poseidon. Um pouco mais ao Norte e o mundo terminava. Um pouco mais ao Sul e grosseiros seres, dragões com dentes enormes rasgariam num só golpe o casco de seus frágeis navios, pondo fim a uma existência, deixando órfãos os filhos no continente e viúvas chorando a triste sina de não sepultar o corpo do amado.
Dias de tormento experimentaram aqueles homens vivendo num mundo que teimava em não se abrir. Que impedia a aventura, que aniquilava o pensamento de expansão e de conquista.
Felizmente para a humanidade alguém um dia saiu de um porto e conseguiu voltar. Alguém que, desafiando o ceticismo de todos os outros, contrariando tudo o que se conhecia e superando sua própria desconfiança, ousou em levantar as velas e seguiu léguas e léguas, superando ondas gigantescas e apavorantes, aproveitando lufadas de vento e calmarias, e chegou a um destino. E não encontrou monstros gulosos e cruéis, nem caiu no inevitável precipício que marca o fim do mundo, dos tempos e o fim de tudo o que existe.
O coração deste primeiro vencedor certamente disparou quando retornou ao seu ponto de partida. Com certeza trazia consiga o gosto da vitória, o gosto doce de quem ousou contrariar o que estava estabelecido pela maioria e constatou que todos estavam equivocados. Quanto prazer se espalhou pelo seu cansado corpo e pelo seu renovado espírito quando encontrou os olhos arregalados de seus familiares e amigos, que revezavam sorrisos e choro, eis que já não contavam mais com o seu retorno. Que saudade enorme que sentiram o navegador e todos os outros daquelas longas tardes, das noites insones e da incerteza que aquela aventura forjava. Que satisfação por terem enfrentado e finalmente superado aquela forte angústia que experimentaram durante a longa ausência. Que vergonha sentia aquele outro que, solitária e furtivamente, uma vela acendeu em memória ao navegador que agora ali na frente de todos, se materializava, alquebrado da luta contra as ondas pesadas, mas ainda vivo.
Talvez poucas tenham sido as peripécias tão empolgantes quanto vencer a força do mar bravio com equipamentos absolutamente desprezíveis, ainda mais quando tudo apontava para a sua impossibilidade. Hoje isso tudo pode parecer insignificante.Tudo hoje parece corriqueiro e certo. As incertezas vão ficando no passado.
E, no entanto, sabe-se que ainda há monstros poderosos que atormentam aqui e ali. E a Terra não é chata. 

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