29/12/2011

O menino e o cavalo bravo

Cena do filme O Cavalo Branco, 1953,
dirigido por Albert Lamorisse
O cavalo bravo corcoveia, negaceia daqui para lá e de lá pra cá. Rápido, destemido, mantém o gosto primitivo pela liberdade. Sobre seu lombo, com destreza incomum, agarrado nas crinas, o mirrado moleque, de pele clara e penetrantes olhos esmeraldas, se apruma. Com valentia incomum equilibra-se como pode. Determinado como ninguém, prometeu a si mesmo que não sairá de cima do animal enquanto ele não ceder. 
A refrega é intensa. O animal sua. Tenta desesperadamente lançar aquele corpo estranho para longe. Por fim, cansado da lida, o bichinho esmorece. O garoto triunfa. Mandem outro potro maleva para o genioso menino. Ele o devolverá amável a seu dono. 
As cenas épicas que abrem esta crônica são frutos da minha criatividade. É pura ficção. Nasceu da necessidade que tenho de contar a luta que se passa entre este menino e um cavalo selvagem nos dias de hoje. É bem verdade que este menino não existe mais. Ele é hoje um velho senhor, que não mantém a destreza do pequeno domador. Porém, os olhos esmeraldinos, estes sim, ainda estão ativos, como lanternas acesas chamando a atenção de todos.

23/12/2011

Sirenes abertas

Arte sobre foto
Moro no trecho entre a Estrada do Mar e o Hospital São Vicente de Paulo. Assim como eu, todos os milhares de moradores deste longo trecho estão acostumados à cena que se repete insistentemente. Não importa o dia, a hora. É certo que uma ambulância ou um caminhão de bombeiros irromperá em disparada pela av. Santos Dumont. Poucos minutos depois o veículo retornará em alta velocidade, com as sirenes abertas abrindo espaços no trânsito. No seu interior uma equipe de salvamento acompanhando um indivíduo ferido em mais um dos incontáveis acidentes de trânsito. Nos desastres de maior proporção as ambulâncias vão e voltam rapidamente socorrendo os envolvidos.
Houve um tempo em que se dizia que as mortes no trânsito são o resultado de uma guerra silenciosa. As sirenes abertas em sinal de socorro, que nossos ouvidos percebem a longa distância, porém, nos alertam para um problema que cresce assustadoramente apesar dos alertas das autoridades e da ampla divulgação que a mídia proporciona.

14/12/2011

Entre a vida e a morte

Está em voga a preocupação de celebridades com o tema morte. O Paulo Santana, dia desses na ZH, lembrava que a preocupação com a finitude corporal é coisa que chega junto com a maturidade. As crianças, os adolescentes e os jovens nem de longe avistam seu fim. Não precisam disso, eis que têm coisas mais importantes a fazer. As energias estão todas concentradas nas tarefas imediatas. O hoje, pelo menos neste estágio da existência, é o que basta. 
Outro gaúcho, não menos ilustre e não menos competente, o laureado repórter Caco Barcelos também aborda o tema em entrevista. Está verdadeiramente incomodado com a possiblidade de que a morte seja o fim de tudo. O doutor Varela, pretenso mestre de todos os assuntos, da saúde física às mais altas discussões filosóficas, também meteu o seu bedelho. Para a alegria dos ateus, dos materialistas, agnósticos, céticos e outras tribos, decretou que a morte do corpo é o fim e ponto final. Sem apelação, sem recurso. Só faltou dizer aquele velho bordão de antigo programa de humor: “-e não me venham com chorumelas!

09/12/2011

O homem primitivo hoje

Se um homem primitivo, daqueles que se orientavam tão somente pelo instinto, fosse catapultado até os nossos dias, levaria tal susto que seus membros ficariam imobilizados. O pavor tomaria conta de seu pequeno cérebro. Como tudo seria novo, grandioso, inexplicável, não se descarta a possibilidade de que o choque danificasse mesmo o funcionamento de sua mente. Tudo o que existe, prédios enormes, carros, tratores, aviões, escadas rolantes, anúncios luminosos, estátuas, monumentos seriam percebidos como grandes feras, prontas para um ataque.
Há um enorme fosso separando este homem primitivo do contemporâneo. Nossos antepassados mais remotos viviam sob o império do instinto. O medo, arma mais do que eficaz para a preservação da espécie, ditava o comportamento naqueles tempos marcados pelo constante  ataque das feras, de ameaças, de cataclismos, de transpiração e pouca inspiração.

03/12/2011

A visão do cotidiano

O cérebro humano se acostuma ao cotidiano. Uma imagem belíssima, estonteante, quando vista com frequência é incorporada de tal forma que se torna lugar comum. Também nas guerras, nas catástrofes, nos cenários de dor e sofrimento, ocorre este fenômeno. Os olhos percebem com maior intensidade o novo. As imagens corriqueiras passam batidas. É a novidade que chama a atenção. As imagens mais antigas, aquelas arquivadas nos compartimentos da memória, só são ativadas vez por outra, ainda assim quando são reunidas pelos sentimentos de saudade, de angústia, de satisfação ou tristeza.
Certa vez um grande amigo disse que estranhou quando visitava sua filha, que reside na frente de um dos cartões postais do Rio de Janeiro. Na sua constante pressa de resolver suas questões mais corriqueiras, não tinha olhos para a maravilha que se apresentava diariamente quando abria a janela de seu quarto.  Era como se aquela belíssima pintura natural fosse um adereço da sala de estar, daqueles a quem não dispensamos nem um furtivo olhar.

24/11/2011

Incômodo natalino

Arte sobre foto
O mês de novembro se encaminha para o final. Na tevê a figura do Papai Noel já dá o ar de graça. Em Gramado, há algumas semanas, foi dada a largada para mais um período natalino. Pesados, com suas roupas vermelhas e suas barbas brancas postiças, centenas de bons velhinhos protagonizaram a tradicional corrida anual. Lance de marketing para promover o Natal Luz daquela cidade.
A graça e a beleza do clima de Natal, no entanto, não são percebidos por todos. Há pessoas, entre elas alguns amigos, que manifestam sentimentos divergentes neste período pré-natalino. Tédio, pavor, irritação, desconforto são alguns referidos. Talvez contribua decisivamente para esta contrariedade o hábito, nem sempre salutar, de divulgar canções típicas a todo volume pelos estabelecimentos comerciais. Se a intenção é bombar as vendas, às vezes a estratégia se revela um verdadeiro tiro no pé.

16/11/2011

Sonhos frustrados

Meninos jogando futebol - Alfredo Volpi
Talvez não contasse ainda com uma dezena de anos. Não tinha ido a nenhum jogo de futebol, a nenhum estádio lotado. Na realidade, meu contato com o esporte se dava pelas ondas do rádio. Tevê era coisa de outro mundo para nós. Um objeto raro na vizinhança. Os poucos aparelhos existentes transmitiam uma imagem pródiga em interferências, com sombras, fantasmas, ruído, chiado, pouca, muito pouca, visibilidade. Em alguns momentos era necessário adivinhar o que se passava na ampla tela, em preto e branco.
A gurizada corria para lá e para cá, atrás de uma bola, subindo em cinamomos para colher os frutinhos que, depois, seriam arremessados de bodoque. Os furtos de goiabas, bergamotas e laranjas, muitas vezes ainda verdes, eram tolerados e até incentivados pela vizinhança que não via mal qualquer naqueles pequenos seres. O tempo corria numa preguiça só. Os dias de Primavera e Verão, então, eram longos. Cansávamos de tanto brincar. Não havia preocupação com violência. Droga não havia por ali. Talvez um ou outro pai na vila abusasse da cachaça, do conhaque, do bíter. Porém, bebida alcoólica não era droga. Ou, pelo menos, naquele tempo ninguém dizia isso. A violência que casualmente nascia do consumo excessivo de álcool ficava circunscrita ao âmbito familiar. O sofrimento era velado, sem escândalo, sem grandes comentários.

09/11/2011

O súbito desaparecimento

Vultos estranhos em suas
danças surrealistas

Sem que notasse, ele sumiu. Procurei daqui, procurei dali e nada. Puxei pela memória, refiz os trajetos, nada. Coloquei a família toda a procurar. Minha sogra fez promessas para São Longuinho, para São João e para todos os santos possíveis e nenhum sinal. Diante da negativa dos poderosos, novamente coloquei a família toda a procurar. Aos pequenos cheguei a prometer um incentivo, um prêmio, um agrado que pudesse aumentar a produtividade, aumentando assim o interesse na tarefa.  Que, nada! As investidas foram infrutíferas, um verdadeiro fracasso. 
Como tudo na vida serve para desencadear e aguçar a nossa percepção e o nosso conhecimento, cheguei a pensar na existência de alguma Lei da Física que relatasse o desaparecimento súbito de objetos. A mais pura bobagem é claro! Nem no Google nem em qualquer enciclopédia encontraria tal tratado científico.
O certo é que, de uma hora para outra, me tornei um órfão da minha visão. Os óculos sumiram, deixando-me com cara de Mr. Magoo. Sorte que contava com providenciais lentes de contato que usava muito pouco. Sempre na esperança de encontrar o danado dos óculos, segui usando, com certo desconforto, as lentes até o final de semana.

03/11/2011

O canto dos pássaros

Dia desses uma colunista de destaque na mídia regional, escritora conceituada e guru das mulheres de todas as tribos, ousou nadar contra a correnteza e desconstituiu uma das clássicas imagens de beleza que a natureza nos oferece. Disse que estava cansada do assédio dos pássaros que diariamente, às 06 da manhã em ponto, insistentemente protagonizavam um barulho ensurdecedor em árvore próxima à sua janela.
Nas redes sociais levou centenas ou milhares de chineladas. Gente que, democraticamente, criticou o ímpeto da articulista. Alguns mais exaltados chegaram mesmo a qualificá-la de insensível, problemática e outras coisas ainda mais pesadas. Sem contar com uma procuração fiz a sua defesa (como se ela precisasse disso). Na oportunidade lembrei que os cronistas, em regra, estão comprometidos com a sua verdade, expressando suas ideias sem censura. Fiéis às suas convicções, mesmo que momentâneas, vez por outra não agradam aqui e acolá. Além disso, o cronista não está escondido. No alto da página encontra-se seu nome e, muitas vezes, seu endereço eletrônico.

25/10/2011

Sorria, sorria


Não sei ao certo de onde vem esta estratégia atual do mundo da propaganda e do marketing de utilizar trilhas sonoras consideradas por muitos como prá lá de brega.  O Bombril, lá em 2007, apresentava o Nélson Ned cantando “que tudo passa, tudo passará”, um sucesso do início dos anos 70. Bem recentemente, em publicidade da Bradesco Seguros, o cantor Byafra apareceu com seu Sonho de Ícaro espantando um ladrão de carro.
Os publicitários não têm sossego. Correm sempre contra o tempo na busca da imagem perfeita, do texto e da canção que embalará os intervalos comerciais dos ávidos consumidores. Agora mesmo, direto do túnel do tempo, como diria aquela apresentadora, o velho Evaldo Braga ganhou vida novamente. Enquanto homens choram ao ver o lançamento da Renault passar, uma versão roqueira embala o choro dos rapazes com a inconfundível música: “Sorria, meu bem/ sorria/ da infelicidade que você procurou”.

20/10/2011

Conto da escolinha

Tinha algo em torno de cinco anos de idade. Diariamente era acometido de crises de choro. Minha mãe, atenta ao sofrimento infantil, levou-me até a professora da escolinha. Disse que já não aguentava mais ter em casa aquele menino chorão, que não se consolava com a explicação de que ainda não havia atingido idade para frequentar as aulas.
A professora, de maneira diplomática, informou que não poderia ser admitido como aluno regular. Porém, poderia frequentar as aulas livremente, sem matrícula. “Ele pode ficar encostado”, afirmou, alertando que minha mãe não forçasse minha ida à escola. “Com o tempo ele vai enjoar e desistir!”, decretou. Talvez não acreditasse na sua capacidade de sedução ou, ainda, desconfiasse que o menino chorão apenas fizesse uma manha passageira.
Ir à escola foi, talvez, a maior alegria que tive na infância. Os primeiros dias então foram inesquecíveis. Meu pai trazia do seu trabalho grandes folhas duras, branquinhas. Ali rabisquei desenhos que eram coloridos com os poucos lápis que dispunha. Certa vez notei a cara de espanto de minha professora diante de um conjunto de rabiscos com tons avermelhados e azuis. Talvez tivesse algum conhecimento de psicologia ou algo assim. Concluiu que o excesso de vermelho talvez não fosse positivo. Acredito que sua análise possa ter influenciado no meu afastamento da preferência clubística de meu pai e irmão mais velho.

13/10/2011

A questão da identidade

Recentemente lancei-me na empreitada de digitalizar o acervo da Revista O Planador, criada pelo José Vilmar, o May. O periódico circulou em Osório e região entre 1975 e 1977. O professor Benito Isolan, diligente mestre, sempre atento na manutenção da memória local, emprestou a sua coleção. Pacientemente tenho "escaneado" as páginas e postado num blog (http://revistaplanador. blogspot.com) que criei para recepcionar este material.
Folheando prazerosamente a revista do May, nota-se uma mudança brusca no Município. O Município dispunha de uma extensão territorial excepcional e uma variedade econômica de fazer inveja a todos os outros. A economia local era impulsionada na temporada de veraneio quando milhares de gaúchos tomavam de assalto a nossa praia de Capão da Canoa. A produção agrícola baseava-se muito nos distritos de Palmares dos Sul, Capivari, Maquiné e Terra de Areia.

10/10/2011

Trabalho e dignidade

Trabalho escravo (ilustração Debret)
Nos primórdios da civilização o trabalho era um castigo, uma pena. No mito Adão e Eva a pena para a transgressão foi a expulsão do paraíso e a necessidade de suar o rosto para o atendimento das necessidades. Entre gregos e romanos, o trabalho era uma tarefa para os seres de classes inferiores. Os cidadãos se dedicavam à política, à defesa do Estado, à administração pública e ao clero. Para Platão, o estado ideal seria composto por três classes: filósofos, guerreiros e produtores. Os trabalhos manuais seriam executados só pelos escravos.
Lembremo-nos de que aqui mesmo, nestas paragens, há pouco mais de 120 anos atrás, indivíduos vindos da África eram vendidos como mercadorias. Arrancados de suas famílias, aprisionados em um navio, perdiam a identidade e, muitas vezes, a vida antes de chegar ao Brasil para cultivar café e algodão.
A concepção que se tem hoje do trabalho, segundo se diz, vem do protestantismo. João Calvino pregava que “privar um homem de seu trabalho é pecar contra Deus, pois o trabalho é dom de Deus”. Hoje sabemos que o trabalho possui um viés pedagógico. Nas relações de trabalho o homem se relaciona com seus pares, interfere nas relações e se modifica. Aprende a conviver com a cobrança de patrões (nem todos bons e justos), com um salário (nem sempre digno e relevante), com as angústias de uma carreira (nem sempre bem sucedida).
Enganam-se aqueles que acreditam que o nosso trabalho diário se resume ao esforço remunerado. Todo o esforço feito pelo homem é uma forma de trabalho. Trabalhamos quando lemos uma revista, quando assistimos um programa de televisão, quando cumprimentamos alguém, quando estamos absortos com nossos pensamentos.
Mesmo quando nosso corpo parece desligado das atividades corriqueiras, durante o sono, nosso cérebro está trabalhando, mantendo o funcionamento do corpo, e nossa alma pode viajar pelos confins do universo, revendo o passado, espiando o futuro ou, ainda, resolvendo nossos traumas e nossas preocupações.
E, nesses tempos atuais, preocupação é o que não nos falta. Além dos dilemas normais, o homem de hoje é capaz de criar outras preocupações, outras necessidades para se enquadrar na sua era. E, convenhamos, muitas das necessidades que criamos são coisas absolutamente dispensáveis. E, no entanto, nos tomam quase todo o nosso tempo e dão um trabalho!

07/10/2011

Os dois Brasis

Charge retirada do blog
Jornalismo 24 horas 
O professor Airton Figueiredo certa vez propôs a leitura de uma obra chamada Dois Brasis. Lá se vão duas ou três décadas. Não lembro maiores detalhes do texto, porém, foi ali que tomei conhecimento da existência de duas realidades distintas num mesmo espaço territorial.
De certa forma, esta é a minha percepção nestes momentos em que a autoestima nacional está sendo embalada pelo sucesso das políticas econômicas, implantadas por Fernando Henrique Cardoso e seguida por Lula e Dilma, com suaves e quase imperceptíveis alterações. A satisfação pelo novo momento histórico tem justificativa. Vivíamos em um país com processo inflacionário insuportável. Os produtos mudavam de preço a toda hora. Os trabalhadores perdiam parte de seus salários minuto a minuto, sem uma recomposição justa . O panorama era de desolação, de desesperança, até de vergonha.

29/09/2011

As ilusões de ótica

Jogos de futebol são ilusões de ótica*
O escritor uruguaio Eduardo Galeano é dos poucos intelectuais que gasta tempo com o futebol. Lembra os grandes jogos, as jogadas de mestre, os timaços de então, a paixão do torcedor. Destaca, no entanto, que o jogo hoje está despido de beleza.
Tanto quanto Eduardo Galeano, quis ser jogador de futebol. Como meu sonho era inalcançável, troquei os pés pelas mãos, tornando-me cronista esportivo. Tarefa que se revelou mais fácil e também prazerosa. Hoje, afastado da crônica, instalado no sofá da minha sala, vejo jogos que não mais empolgam. Espetáculos que ficam devendo muito no quesito arte.
O jogo que vimos hoje é um arremedo do que se jogava. Os times são divisões militares que se postam maquinalmente como se marchassem numa parada do Dia da Pátria. Falta leveza, graça, malandragem e improvisação.  Este espetáculo que vimos aí nas telas da tevê é um mal acabado rascunho, vendido como se obra-prima fosse.

21/09/2011

O destino

Acreditou-se um dia que o destino era uma história já escrita. Os homens aqui apareciam com um roteiro pré-estabelecido. Diante disso, cabia tão somente seguir o escrito, sem a possibilidade de providenciar alterações. Como soldados, marchando em fileiras absolutamente organizadas, homens e mulheres seguiam suas vidas aguardando a chegada dos acontecimentos que lhes cabiam. Marionetes dos deuses, brinquedinhos nas mãos dos soberanos. Suas vontades não operariam mudanças. Nascimento, vida e morte. Uma história sem sentido. Caminhos traçados previamente, inalteráveis.
Desde pequeno penso sobre isso. Ali, depois das primeiras dificuldades que a vida apresentava, concluía que a vivência de cada um é tal qual um livro que leva nosso nome na capa, uma breve introdução e com inúmeras folhas a serem preenchidas lentamente. É uma imagem simplória, uma conclusão infantil para um tema que tem suscitado aos maiores pensadores a formulação de teorias das mais diversas para explicar os enigmas da vida.

18/09/2011

O nariz da miss

A cirurgia é um dos grandes avanços conquistados pela medicina, nas últimas décadas.  Milhares de vidas têm sido salvas no mundo todo pelo constante aperfeiçoamento de técnicas desenvolvidas ao longo dos tempos. 
O início das cirurgias, pelo que se sabe, foi dramático, até cruel. Conta-se que em países orientais ocorreram as primeiras experiências, com a tentativa em restaurar corpos danificados por acidentes ou guerras. Depois, já nas grandes guerras no Ocidente, os cirurgiões eram os barbeiros, que de posse de lâminas de fio incontestável amputavam membros dilacerados, muitas vezes no próprio campo de batalha, sem anestesia, sem assepsia.  
De reparação em reparação, as cirurgias foram evoluindo de tal forma que chegaram, agora no século XXI, à massificação.  Os grandes narizes, os narizes minúsculos, os seios extremados ou minúsculos, o excesso de rugas (as marcas de expressão), a falta de queixo ou o excesso, as mandíbulas proeminentes, enfim, quase tudo pode ser o centro de uma reparação estética. E o pagamento em suaves prestações mensais.

15/09/2011

Nos tempos das cartinhas

Houve um tempo em que o meio mais rápido de comunicação entre seres separados por léguas de distância era através de uma missiva, uma carta. Os mais jovens, com certeza, desconhecem o que vem a ser tal coisa. Vamos então ao insubstituível e insuperável dicionário. Lá está a definição de carta: "escrito que se envia a outrem com cumprimentos, pedido, ordens, notícias etc.; epístola, missiva".

O processo de envio de tal correspondência iniciava com a compra de papel adequado e de um envelope padrão. Depois, o escriba haveria de queimar os neurônios para escrever os seus sentimentos, suas apreensões, suas desconfianças, as notícias e os pedidos. Acabado o texto, normalmente após o amassamento de um bom número de folhas de papel, - descartadas por alguma impropriedade, algum borrão, algum arrependimento oportuno-, seguia-se o envelopamento, com o preenchimento do emitente e destinatário com seus endereços legíveis.

07/09/2011

Caderno de anotações

Acontece cada uma! Durante uma caminhada por estas ruas da cidade me deparei com um caderno, na beira da calçada. A letra bem desenhada demonstra o cuidado e o capricho do escriba. Suas anotações já numa primeira análise me chamaram a atenção. Olhei para um lado e outro e nem sinal de quem o tenha perdido. Com objetivo de localizar o autor escolhi alguns trechos que achei interessantes.



Mundo encantado
O menino encontra uma lâmpada antiga. Esfrega daqui, esfrega dali e nada. Esperava o surgimento de um gênio que realize seus três desejos. Decide assoprar na boca da lâmpada e surpreendentemente é sugado sem apelação. 
Com satisfação constata que está num reino encantado. As casas branquinhas são feitas de chocolate ao leite, as janelas e portas marrons, de chocolate também. As ruas pavimentadas de mariolas. O meio fio de marshmallow. Logo na frente, uma nuvem de algodão doce descarrega uma chuva de M&M’s. Excitado corre em direção à chuva com as mãos em concha. Nisso, o menino tropeça e cai de boca numa pedra de passoquinha.
Desperta de sobressalto com sua mãe gritando ao lado: “Vai já escovar estes dentes, menino!”

Outro fim possível
“Vovô, vovô! Acorda, tá na hora da insulina!”

Planeta dos Macacos
Num planeta distante, numa galáxia qualquer, uma família de macacos assiste à Sessão da Tarde. Na tevê passa um filme onde humanos administram um planeta. “Não gosto de ficção científica”, diz o patriarca.

A rainha ranzinza
A rainha fora de casa é simpática. Ri com facilidade. Brinca e se diverte. Na tevê transmite uma paz! “Viva a Rainha!”, gritam todos quando passa o cortejo real. 
Os que convivem com ela em casa, porém, conhecem a sua outra face. Sua alteza é rabugenta, ranzinza, implicante. Gasta bom tempo do dia a gritar: “Fulano faz isso, Sicrano ajuda lá, Beltrano não fez ainda?”. 
Os súditos, porém, não abrem a boca, não contestam nada, nada. Nada comentam que desabone a rainha. Os de fora certamente não acreditarão. A rainha que conhecem pela tevê é simpática e ri com facilidade. 
Quando, porém, sentem que há injustiça no tratamento dispensado em casa falam baixinho, num tom de desculpa: “Ela não faz por mal”.

Ironia das touradas
Assistindo na tevê estas touradas, identifico na reação do público até certa evolução. Hoje chegam ao êxtase com a morte do touro. Esta gente toda, um dia, no Coliseu Romano, ria, gritava e chegava ao delírio quando os leões destroçavam sem piedade os corpos dos Cristãos. 

Constatação
Quis usar uma gíria dos tempos da turminha da adolescência, mas ela sumiu. Procurei nas gavetas da memória e nem sinal dela. Ahhhhh, foste tu Glutão (que é o tempo), sempre devorando os nossos sinais juvenis! Depois, como se desculpando, arrota palavras sérias que vamos incorporando nos nossos diálogos da maturidade.  

31/08/2011

A magia das palavras

Um dos aspectos mais importantes da comunicação humana é a existência da palavra. Imagino o quanto era difícil ao homem primitivo se fazer entender sem ela. Com certeza o processo era embaraçoso, difícil, intrincado. Talvez por isso se tenha a ideia de que os primeiros humanos eram bem mais nervosos. Também pudera o diálogo não se estabelecia por absoluta falta de meios.
A palavra surgiu como uma convenção suplantando gestos e grunhidos. É um código, um símbolo, estabelecido previamente visando expressar ideias. De certa forma trouxe um pouco de paz e de tranquilidade naqueles tempos tão duros, onde o homem tinha que enfrentar uma fera a cada instante na luta para alimentar o corpinho e, ainda, cuidando para não se tornar o prato principal de outrem.
A palavra não surge assim sem aviso em nossas vidas. Há todo um treinamento para que o indivíduo se constitua num ser falante. A mãe instintivamente vai largando a conta gotas sílabas, de forma espaçada. "Ma ma, pa pa". O pai mais impaciente, logo após adornar o pimpolho com a camisa do tricolor ou do colorado, já deseja vê-lo cantando o hino do time preferido. Porém, a palavra é uma conquista que vem chegando aos poucos. No início balbuciada docemente, entre risos e chorinhos de manha, quase de maneira ininteligível. Quando surgem as primeiras palavras ditas pelo bebê e uma verdadeira magia, ela reverbera nos ouvidos dos pais corujas. São comentadas e alardeadas pelas mães de primeira viagem.

23/08/2011

Gentileza gera gentileza

Passava alguma coisa do meio-dia. Encontrava-me na fila do caixa de um restaurante. O gosto de peixe frito não havia sido eliminado pelo providencial cafezinho. Havia um número considerável de pessoas que, da mesma forma, aguardavam pacientemente a única atendente a somar as comandas, passar o cartão na maquininha e sorrir agradecendo em nome do estabelecimento. Quando chegou a minha vez, uma jovem dotada de uma fúria digna de um centroavante rompedor, lembrando os bons tempos do Fenômeno Ronaldo, arrastando uma menina pequena pela mão, com bom senso de antecipação, saltou de maneira decisiva e de comanda em punho tomou a minha frente, sacou seu cartão e marcou um golaço.

18/08/2011

A sogra

Dona Fausta, 80 anos de vida
A anedota é uma história curta, surpreendente, descompromissada, engraçada, cujo objetivo é levar o ouvinte ao riso. Para chegar ao intento não se medem esforços. Escolhe-se um personagem qualquer e, valendo-se de características pessoais, morais ou físicas, compõem-se breve roteiro que finaliza com algo engraçado. Saindo um pouco do sério, hoje vou contar aqui uma ou duas piadas colhidas sem muito esforço na internet. São por demais conhecidas e reveladoras, influenciando decididamente na formação de um estereótipo. 
O genro chega perto da sogra e a surpreende dizendo: “sogrinha, eu gostaria muito que a senhora fosse uma estrela!”.  Não cabendo em si de felicidade e encantamento, com um sorriso nos lábios, responde a sogra: “Quanta gentileza, genrinho. Por que você fala isso?”.  O genro então completa: “porque a estrela mais próxima está a milhões e milhões de quilômetros da Terra”. 
Para muitos a preocupação com a sogra vai além da sua morte: “A sogra do cara morreu e lhe perguntaram: - O que fazemos? Enterramos ou cremamos? - Os dois! Não podemos facilitar!”.

11/08/2011

O apaixonado grito do Homem Macaco

Ron Ely (Tarzan) e Chita

Ron Ely queria ser Tarzan. Tinha tanta vontade que leu toda a obra de Edgar Rice Burrougs. Porém, não cabia na descrição do personagem. Era alto demais, magro demais, loiro demais. Tal qual Tarzan, nunca desistiu. E, no fim, depois dos testes, ganhou o papel na série televisiva que sucesso estupendo fez nos anos 70. Era tanto empenho que dispensava os dublês. Dentes e costelas quebradas, arranhões, distensões, acidentes leves, médios e graves eram rotina no set.
Nos sábados à tarde, minutos após o episódio semanal, minha turminha – cinco ou seis meninos de nove ou dez anos, corríamos para a nossa selva no campinho da Dona Guria, na esquina das ruas Barão do Rio Branco e Pinheiro Machado. Ali, entre pés de maricás e mamoneiros, enfrentávamos animais selvagens, vencíamos rios caudalosos. Um perigo atrás do outro, oculto detrás de cada árvore, de cada moita.

03/08/2011

A cevada e o café

Não sei precisar se a crise atingia todo o país ou se era localizada sobre a nossa casa. Certo é que o armário de mantimentos, naqueles tempos de esquálidas vacas, constantemente encontrava-se em crise.  Para desespero de minha mãe que tinha que encontrar alternativas para alimentar aquelas bocas pouco exigentes. Com a criatividade que só uma mãe amorosa em desespero tem, juntava um restinho daqui e outro dali, e alguma coisa comestível, como num passe de mágica, saia da panela. Pratos pouco convencionais, como polenta e sardinha, vez por outra davam o ar da graça. E era uma delícia, sim!
A vizinhança, na mesma condição de lamúria, era comparsa em experiências, em virações, em inventividades. As ideias corriam como o fogo em um rastro de pólvora. Algumas delas, no entanto, mostravam-se absolutamente desastradas. Foi o que ocorreu certo dia em que se decidiu na vila que o cardápio do meio-dia seria um cozido de pulmão de vaca. A molecada, armada de algumas moedinhas, correu até o fétido matadouro. A iguaria trazia em saco de pano deixava um carreiro de sangue no chão. O pulmão vinha com um pedaço da traqueia. Era feito de se ver. Com tanto amor e carinho as mães jogaram-se a limpar o produto e levá-lo ao fogo. Levantava uma espuma densa, quase que derrubando a tampa da panela. Depois de pronto, bem o panorama não se mostrava dos mais animadores. A tal iguaria não passava da boca. Mastigar aquela massa era o mesmo que morder um isopor. Os cães ao menos tiveram ração de sobra entre aquelas casinhas mal caiadas.

29/07/2011

A linguagem dos anos 80

Cine Labor
Cada período tem uma linguagem que o identifica. Se hoje fizermos um exercício de memória certamente nos surpreenderemos com a quantidade de expressões que caíram em desuso, seja pela evolução natural ou pela perda de certos  referenciais. O cenário  político, os acontecimentos da época, as preferências de cada um, a região onde se vivia, os colégios que frequentávamos influenciavam diretamente na nossa linguagem. Vamos relembrar algumas das expressões mais comuns na década de 80, aqui por Osório e região, e que hoje talvez não façam muito sentido, especialmente para os mais jovens.

12/07/2011

Hora do cafezinho

As lendas são contos fantásticos, que explicam o surgimento das coisas. Há lendas para tudo. Aqui no Brasil há lendas que explicam o aparecimento da mandioca, do açaí, do guaraná, todas elas de origem indígena. Em todas há um ponto em comum: o sofrimento de alguém numa tribo deu origem a um fruto que se tornou importante para os índios. O produto mais apreciado pelos brasileiros na atualidade, no entanto, escapa a este padrão.
O apreciado café, cujo surgimento real ninguém ousa datar, teve sua origem lendária bem longe daqui. Conta-se que na Etiópia, há mais de mil anos, o pastor Kaldi notou que suas cabras aparentavam contar com energias renovadas após consumir uma fruta amarelo-avermelhadas de uns arbustos que nasceram por acaso em seu campo. Resolveu narrar a história um monge, que  apanhou um pouco das frutas e levou consigo até o monastério. Após usar os frutos na forma de infusão, percebeu que a bebida o ajudava a resistir ao sono enquanto orava ou em suas longas horas de leitura do breviário. A descoberta se espalhou rapidamente entre os monastérios, criando uma demanda pela bebida. As evidências mostram que o café foi cultivado pela primeira vez em monastérios islâmicos no Yemen.

06/07/2011

Moral da história

Esopo
(Diego Velásquez)
Hoje, na velocidade em que o mundo das comunicações se movimenta, pode parecer impossível que a tradição oral tenha sido a responsável pela difusão de algumas ideias tidas como grandes verdades que nos chegam até os dias atuais. E o mais incrível, ainda, é que três grandes responsáveis por isso podem nem mesmo terem existido.
Assim, o Grande Sócrates não passaria de um personagem criado pelo filósofo grego Platão. Da mesma forma o sábio chinês Lao-Tsé, guardião da biblioteca do império, que teria ditado os versos que originaram o Tao-Te-Ching, base do Taoísmo, também seria um mito. Outro nome respeitado,criador do gênero da fábula, o escravo corcunda e desengonçado grego Esopo também é acusado de não-existência. Não obstante as diferenças que os separam, uma característica ao menos os une: suas ideias foram transmitidas oralmente. Suas palavras foram gravadas anos depois por discípulos, pensadores e pesquisadores.

28/06/2011

Encontro de amigos numa noite fria

Comissão organizadora do Encontro dos Amigos de Osório 
A noite era de um frio intenso. Dessas invernais em que, não obstante a vontade, por qualquer motivo - existente ou ficto-, pagamos para não sair de casa. O ideal seria, com certeza, encontrar uma boca de fogão a lenha e ali colocar os pés para esquentar a alma, se houvesse como. Ainda por cima, uma chuva fina insistia em dar o ar da graça. O vento vez por outra ganhava força e se impunha, assoviando forte, batendo janelas e portas, balançando placas de sinalização, revirando sombrinhas e despenteando os corajosos. Amigos de longa data, enfrentando o clima adverso, se deslocavam para o encontro, combinado pela rede social Facebook.
Nós chegamos um pouco antes. Eu e o Jerri já tínhamos passado o som, revisado luzes, ensaiado alguma coisa. Tudo parecia perfeito. Os membros da equipe de trabalho já ocupavam seus postos. O time da organização vinha chegando. A casa, pequena, aconchegante, foi recebendo os primeiros convidados. Eram recepcionados  calorosamente com beijos e longos abraços. Gente que não se via há eras.  Amigos do passado, dos bancos escolares, das estripulias da vida infantil, dos primeiros namoros juvenis, separados pelo vai-e-vem da exigente vida adulta.

22/06/2011

Um menino comum

Arte sobre foto

Houve um tempo que imaginava contar com um poder oculto. Chegaria o dia em que tal poder viria à tona e, aí sim, daria minha contribuição decisiva mudando o mundo.  Tal qual ocorre com os grandes heróis que povoam a infância de qualquer garoto, manteria este poder envolto em um segredo absoluto. Talvez um ou outro confidente, como Batman, que contava com o eficiente mordomo Alfred, dividisse comigo este fardo que é manter ilesa e oculta a minha personagem secreta.
Durante o dia estaria por aí, como um cidadão comum, desempenhando tarefas corriqueiras, sem chamar muito a atenção. Afinal de contas, nessas histórias de heróis, discrição é a alma do negócio. Diante do perigo, porém, daria uma desculpa qualquer e me lançaria em mais uma missão onde minha interferência seria decisiva, fundamental. Depois de mais um ato grandioso, apareceria novamente, talvez com cara de songa-monga ou mocorongo, como se nada soubesse, sem deixar pistas de que havia feito um esforço fenomenal para salvar a humanidade de alguma catástrofe.

15/06/2011

Energia renovável para um mundo sustentável

Fac-símile da capa do
caderno Nosso Mundo 
Sustentável, de ZH

Os computadores de mesa ainda não haviam chegado por aqui. As novidades do Vale do Silício eram coisas para americano endinheirado. A internet era embrionária, servindo somente para comunicação entre os bancos de dados de grandes universidades dos EUA. Neste pedaço de Rio Grande, muita estrada de chão batido e pouco asfalto. A década de 80 marchava para o seu final. Semanalmente eu e o Sérgio Tressoldi, o Bolão, numa Brasília branca, nos dirigíamos a Palmares do Sul onde produzíamos um material jornalístico para a Rádio Osório.  Com um gravador realizava entrevistas com as autoridades de então. Se algum fato extraordinário ocorresse, um telefone convencional quebraria o galho, muito embora, algumas vezes, a voz fosse suplantada por um ruído fortíssimo.

07/06/2011

Noticiário pornográfico

Tal qual ocorre depois dos anúncios de cigarros, após os noticiários de tevê deveria ser divulgada uma vinheta onde o locutor apressadamente diria: “o Ministério da Saúde adverte, assistir noticiários à noite pode causar enjoo, ansiedade, depressão e insônia”.  Ou melhor, o mais correto para evitar problemas de saúde aqui na planície seria rodar a vinheta após cada notícia que envolvesse a Capital Federal e os seus condôminos.
A impressão que fica para todos nós que ignoramos solenemente o tamanho da roubalheira que assola as finanças do país é de que o Brasil não é a sexta economia do mundo, mas sim a mais poderosa de todas. Basta ver as cifras que se divulgam todos os dias em esquemas milionários que desviam verbas da Saúde, da Previdência, da Educação, da Segurança Pública, das obras públicas federais, estaduais e de muitos municípios. A gatunagem não respeita nada, absolutamente nada. Nem o remédio dos doentes da nação, nem a merenda dos nossos pequenos e futuros cidadãos que, um dia comandarão esta máquina, ficam imunes à insana malícia desta gente.

01/06/2011

Os gênios e os loucos

Raul Seixas ( arte sobre foto)
Televisão não havia em casa. Valia-me da vizinha mais próxima para assistir a algum programa. A diversão não era segura, pois dependia do humor do casal. O problema é que, vez por outra, elegiam as tardes de domingo para colocar a vida afetiva em ordem. Ciumento e calibrado com alguns goles a mais de cachaça, o marido – gente boa quando sóbrio - muitas vezes partia para a ignorância, tentando agredir a esposa. Entre gritos, impropérios e empurrões, desferidos de lado a lado pelos desafetos, eu e os filhos do casal prudentemente abandonávamos o conforto do sofá e fugíamos para o lado mais seguro, o de fora da casa. As crianças retornavam quando os ânimos acalmavam. Eu, dotado de alguma dose de prudência infantil, abortava qualquer tentativa de diversão e fitava a casa de longe, ouvindo somente os sons do programa preferido.

31/05/2011

Aqui tem Mu-Mu

Uma vaquinha preta, cabeça branca, com uma florzinha na boca e a língua de fora, a inconfundível vaquinha Mu-Mu, talvez tenha sido o primeiro caso de marketing gaúcho. Não havia boteco, venda, bolicho ou  armazém que não ostentasse o anúncio no lado de fora do prédio: "Aqui tem Mu-Mu".
O Doce de Leite Mu-Mu é uma instituição gaúcha. Sua fórmula inconfundível acompanha a vida dos gaúchos desde 1945. Recentemente a empresa passou a ser comandada pela Vontobel (Vonpar Alimentos), fabricante e distribuidora da Coca-Cola no Estado. A vaquinha, porém, passou por algumas intervenções com a intenção de torná-la mais moderna. A estratégia do passado, no entanto, permanece a mesma. Agora, ao invés de plaquinhas nos comércios, a empresa preferiu utilizar grandes outdoors.
Além de potes o Doce de Leite Mu-Mu, no passado, também era embalado em sachês, em tamanhos variados, podendo ser adquiridos por pessoas de todas as rendas. Até hoje no RS Mu-Mu é sinônimo de doce de Leite.

Obs: postada originalmente na página Anos 70/80

25/05/2011

A dor do abandono


Um fenômeno silencioso vem ocorrendo no interior. Casas, ainda em bom estado, foram fechadas. O mato toma conta do que outrora era um bem cuidado pátio. Os moradores há muito abandonaram a propriedade.  Mudanças na legislação expulsaram os antigos colonos para a cidade. Já envelhecidos, com saúde comprometida, não restou mais nada o que fazer. Aqueles que construíram algum patrimônio abandonam os hábitos antigos e se tornam citadinos, preservando o gosto pelo cultivo na manutenção de pequenas hortas. Outros tantos ocupam um puxadinho estrategicamente construído nos fundos das casas de um filho.

20/05/2011

O Espírito que Anda

Há mais de ano minhas crônicas, publicadas aqui no Jornal Bons Ventos, são postadas no meu blog. Foi a forma que encontrei para reunir todo o material produzido ao longo de mais de dois anos. O sucesso foi surpreendente. Não suficiente para me tornar uma personalidade do mundo virtual, é claro, nem para trazer quaisquer dividendos financeiros. Porém, através da web, as ideias ganham o mundo, chegando a locais antes inimagináveis. É o pensamento viajando, rompendo fronteiras, projetando-se além do físico, tal qual faz nossa alma em nossos sonhos.  
Diferentemente da prática que me impus, hoje subverto a ordem e publico uma coluna que nasceu para o blog, num tema que é muito caro: a imortalidade.

  A Imortalidade do Fantasma*

Fantasma- Reprodução
Não tinha como adquirir revistas em quadrinhos, naqueles anos 70. Assim, restava encontrar alternativa para não ficar distante daquela febre infantil. Uma delas era passar na Miscelânia, um sebo de propriedade do Mick, onde furtivamente folheava os gibis enquanto tentava disfarçar dúvida na escolha do produto, que nunca seria comprado. 
Outra forma concreta era a herança. Em algumas casas do Centro da cidade era costume descartar os gibis antigos colocados estrategicamente perto da calçada. Uma das residências onde se juntavam preciosidades era a do professor, ex-prefeito e deputado Romildo Bolzan. Mais de uma vez meus olhos brilharam diante de preciosidades como Tio Patinhas, Recruta Zero, Madrake e O Fantasma ali na calçada ao meu alcance.

13/05/2011

Vitórias no futebol e na vida

O ex-presidente Lula utiliza com rara maestria a linguagem do futebol para explicar os fenômenos da política e da economia. Confesso que não sou um ardoroso defensor do reducionismo futebolístico. Porém, como se sabe, nada conquista tanta simpatia entre os brasileiros do que o distinto esporte bretão. Dentro de um barraco da favela carioca, nas casas rodeadas de jardins de inverno da serra gaúcha, nos casarões existentes dentre os muros dos condomínios mais pomposos do país, residem os técnicos mais inteligentes do futebol brasileiro. Jamais perderam uma partida, conhecem todos os atalhos para a vitória e identificam a quilômetros a burrice dos luxas, dos falcões, dos renatos e dos tites.

11/05/2011

O Guaraná Fruki do Beckhan

O astro inglês David Beckhan descobre agora o que descobri lá no início dos anos 70: o doce sabor do guaraná!  É o que conto nesta pequena crônica.

 Aqui pelas bandas dos pampas, nos anos 70 e 80, quando se falava em refrigerante (ou refri como preferia a turma do Bom-Fim), não estava se falando da Coca-Cola. Os gaúchos foram os últimos a se entregar aos encantos da Coca. Foi o reduto onde a Pepsi resistiu bravamente na preferência popular.
Mas a Pepsi tinha os concorrentes locais. Dois deles se destacavam entre a garotada. Minuano Limão e Guaraná Frisante Polar eram os grandes refrigerantes desta terra. O Minuano, fabricado pela Vontobel, era delicioso. Na sua publicidade um gaudério exclamava no final: Eu bebo porque gosto, tchê!
O Guaraná Polar tinha um jingle especial que não saia da cabeça dos meninos: "Guaraná Frisante Polar, refrescante, refrigerente, Guaraná Frisante Polar...".

03/05/2011

A ruidosa morte de Osama Bin Laden

Osama (Arte sobre foto)
A segunda-feira havia iniciado apenas para os madrugadores ou para aqueles que haviam alongado o domingo. Na longa guerra travada nos bastidores do mundo, um novo capítulo se iniciava. Considerado o gênio do mal na atualidade, Osama Bin Laden sucumbiu ao ser surpreendido pelos americanos. Protagonista da ação mais espetaculosa de todos os tempos, a destruição das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, no coração financeiro de Nova Iorque, Bin Laden impôs aos americanos o gosto amargo da impotência, coisa inédita até então à grande potência mundial.
A audaciosa ação, que resultou na destruição de um dos ícones da cultura americana, cenário de filmes, videoclipes e desenhos animados, somada à dor resultante da perda de quase três mil vidas, impôs o medo de que outros ataques terroristas viessem a ocorrer da mesma maneira, surpreendendo os órgãos de segurança dos EUA. Milhões de dólares gastos na reestruturação do sistema antiterrorismo e, mesmo assim, o medo de ataques ainda persiste.

27/04/2011

A guerra do bem no mundo virtual

Imagens antigas trazem
o passado de volta
As ferramentas atuais do mundo virtual, as redes sociais, como Facebook e outras, são belas oportunidades de compartilhamento de informações. Familiares, amigos do passado, conhecidos, ex-colegas de aula, apartados do convívio pelos caminhos que a vida vai traçando, podem se reencontrar, ao menos na tela do computador. É um bom serviço que estes tempos de informação instantânea tem prestado a todos nós. Outro é o lado do entretenimento, importante também nestes tempos de stress, de busca de resultados e de competição exagerada. 
Os álbuns de fotos do passado que os amigos publicam são muito interessantes. Têm a força de chamar o passado para o presente. Além disso, é um exercício no mínimo interessante observar os modelitos usados pelos jovens, os cabelos esvoaçantes de outrora, os acessórios que se encontravam na moda. Aí se denota, também, o efeito que a passagem do tempo impõe ao indivíduo. Por aqui e por ali nota-se que o tempo, este impecável senhor que consome a cada dia um pouco de cada um de nós, tem sido bondoso com alguns e extremamente cruel com outros tantos. O bonitão do passado, com algumas décadas de intervalo, virou um senhor de respeito. A bela jovem, cristalizada no meio de tantas meninas no baile de debutantes do GAO, parece favorecida pelo passar dos anos.

20/04/2011

Digas o que vestes que te direi quem és

Simplicidade nos trajes do homem
pré-histórico

Não se sabe ao certo quando iniciou o costume humano de cobrir o corpo. As primeiras vestes, afirmam os estudiosos, eram pedaços de peles de animais largados aleatoriamente  visando reduzir o impacto das intempéries. Já na Pré-história, identificam-se os primeiros sinais de que a roupa poderá diferenciar os homens. O valentão, que eliminou um urso, desfilava garbosamente introduzindo aquilo que, milhares de anos depois ficou conhecido como marketing pessoal. Esnobismo, exibicionismo e outros ismos são, assim, meras decorrências do ato primitivo.

13/04/2011

As mães de Realengo

(Arte sobre foto)
Em Aquele Abraço, Gilberto Gil nos apresenta um Rio de Janeiro sorridente, lindo, leve e solto. Entre os alôs, Gil destina um ao Realengo, bairro de classe média alta, tranquilo e próspero. A história do bairro, no entanto, mudou radicalmente na semana passada. Ao invés da tranquilidade, da serenidade, a insegurança, a reocupação, a dor e o sofrimento espalharam-se para todo o mundo. Um único ser, em sua insana vivência, movido pelo seu lado mais sombrio, sepultou 12 adolescentes, que insuspeitadamente se dedicavam a uma das tarefas mais gratificantes que a civilização implementou: a busca pela instrução.

07/04/2011

Fortunas e merrecas no mundo do espetáculo

O mundo do espetáculo é um mundo diferente. Os valores que circulam por ali são surreais. Em Hollywood, um único ator, segundo levantamento da Revista Forbes, pode receber a montanha de 130 milhões de dólares em uma única película. Foi o que recebeu o ator americano Johnny Depp, o mais bem pago do cinema americano. Diante dele, Brad Pitt, 10º colocado na lista, é um pobre coitado, com meros 27 milhões de dólares.
Lógico que, se o ator principal ganha tudo isso, é porque o produto vai arrasar. O estúdio recuperará o valor logo em seguida, através de uma bilheteria estupenda nos cinemas. Lucrará, ainda, vendendo o filme para as tevês fechadas, lançará DVD, bonés, camisetas, bonecos, jogos e uma série de produtos que darão um lucro substancial.

30/03/2011

A magia dos bolinhos de chuva

É um despropósito o que tem chovido neste início de Outono. Quem aguardava algo como um prolongamento do Verão, enganou-se. O tempo mais parece o Inverno, com seus dias chuvosos e frios.
E a chuva me remete a um tempo de tardes vazias. Uma verdadeira tortura. Com a chuva presente, nada de atividades na rua. Os amigos de bola, de diversão, de traquinagens, permaneciam inertes em suas casas. As mães não permitiam qualquer incursão à rua. Com sete, oito ou nove anos, entendiam que era necessário o resguardo. Restava-me a pequena janela, de onde observava um mundo onde a atividade mais vibrante era a dos pingos de água caindo e formando poças no nosso campinho. Até os cuscos se escondiam nos dias de chuva.

29/03/2011

História de um furo mundial

Gêmeos de Cândido Godói
Cada vez que aparece esta história do número exagerado de gêmeos de Cândido Godói na imprensa lembro de uma matéria que escrevi para um jornal de Santa Rosa sobre o assunto. Era um fato inusitado. Numa pequena comunidade, na Linha São Pedro, interior de Godói, boa parte das famílias tinha gêmeos. Não havia explicação para isso.
Alguns chutavam que a água do local tinha algum componente que favorecia de alguma forma à fertilidade podendo, inclusive, influenciar no nascimento de gêmeos. Chegou-se até a cogitar a influência do médico nazista Mengele que teria desenvolvido pesquisa envolvendo famílias descendentes de germânicos, escondidos naquele pedaço de chão.
Independente das conclusões atuais, o que me deixou intrigado, e satisfeito ao mesmo tempo, foi a revelação de moradores daquele Município da história da matéria que fiz e que desencadeou este processo todo, chegando ao estudo científico do caso. Segundo relato do morador Ivo Ferreira dos Passos fui procurado para fazer uma matéria sobre um minhocário. Não obstante, contrariando o combinado, divulguei a existência dos gêmeos na comunidade.

23/03/2011

O silêncio oriental diante do caos

Um terremoto que destrói centenas de prédios, milhares de vidas consumidas, corpos resgatados dos entulhos. Um tsunami que inunda cidades, destruindo ruas, pontes, praças, engolindo gente. Pessoas procurando familiares que se perderam. Falta de luz, pane na comunicação. O deslocamento das placas tectônicas e a violência das águas causaram outros males. Atingiram usinas nucleares. Caos. Não é o apocalipse, o fim do mundo, o final dos tempos. Muitos  dramas num mesmo lugar. No Japão. Tão distante dos olhos, tão presente nestes tempos de instantaneidade da informação. A força incontida da natureza mostrando novamente as garras. Tem sido comum nos últimos tempos.

16/03/2011

Nos tempos da magrinhagem

Cascalho  - imagem:carosouvintes.com.br

Ser magrinho nos anos 70 era ter um estilo pessoal. Cabelos longos, em desalinho, camiseta, calça apertada na canela e jaqueta jeans. Havia, também, as calças com boca de sino, muitas delas alargadas com uma nesga com uma cor diferente. O magrinho era o jovem descolado, urbano. Era o cara que jogava uma mochila nas costas e ia para a praia ou para Santa Catarina de carona. 
Os termos magrinho, magrinhagem, ganharam força na voz do Cascalho, o Carlos Contursi, que comandava um dos programas jovens mais apreciados de então, na Continental AM 1120 - a Superquente-, o  Cascalho Time. Nas sociedades, Contursi promovia o Baile dos Magrinhos.

11/03/2011

Tristes manchetes

Esta sexta-feira é um dia de tristes manchetes. Fúria da natureza no Estado, terremoto, destruição, mortes, tsunami. A imprensa não tem tempo para respirar. Por aqui, a tarde foi corrida. Zum-zum-zum, notícias desencontradas, informações incompletas. Tumulto, correria. Pelas ruas da cidade um movimento incomum. No Hospital São Vicente de Paulo uma aglomeração jamais vista. São centenas de pessoas na frente querendo saber algo mais. Um jovem osoriense foi assassinado. 16 anos de idade. Comoção geral. O atleta de futuro partiu.

08/03/2011

Crônica para uma quarta de cinzas

Carnaval de salão - foto: patosonline

Palavras que denunciam

As escolas já passaram. Passistas, comissões de frente, alas das baianas e destaques são coisas do passado. Na avenida vazia alguns garis recolhem o que sobrou. Quem brincou, brincou; quem sambou, sambou. Agora é só esperar aquela inconfundível voz, em rede nacional, anunciando a “nota 10!”. Vibro com a nota 10, mesmo sem saber para que quesito, para que escola ela foi atribuída. Nesta busca pela perfeição, nota 9,5 é merreca, é fracasso, é derrota. O que vale mesmo é a vibração do “10!”.

01/03/2011

Scliar, o Carnaval e as mulheres

Scliar (arte sobre foto)

Moacyr Scliar é imortal. Não só pela cadeira na Academia Brasileira de Letras, que ocupava desde 2003, mas sim pela produção de 70 obras entre contos, novelas, ensaios e romances. São histórias vivenciadas por cada um dos seus milhares de leitores espalhados por todo o mundo. Os anseios, as lutas, os problemas dos seus personagens são as mesmas lutas, os mesmos anseios e os mesmos problemas dos homens e mulheres comuns que se identificam com suas obras.
Scliar bem que poderia ser pedante. Bem que poderia posar de estrela. Teria todo o direito de lançar em suas muitas colunas semanais na Zero Hora expressões difíceis, palavras rebuscadas. Porém, preferia sempre atingir o maior número de pessoas. Nestes tempos de culto à celebridade, onde muitos representam personagens, Scliar interpretava a si mesmo.  É o que dizem seus amigos mais próximos. É o que diz sua obra.

23/02/2011

A queda dos muros

Os muros, construídos com suor e sangue, com destruição de homens e mulheres, com perseguições políticas e religiosas, estão sendo destruídos, no mundo árabe.  A população oprimida por regimes de força reage sitiando os tiranos, encurralando seus comparsas de maneira surpreendente. Encastelados, protegidos por soldados hesitantes, os ditadores tentam se segurar na cadeira. Com a força de águas represadas, a população pressiona de tal forma que vai abrindo fendas, corroendo vagarosamente as estruturas do poder.

17/02/2011

As dores de Ronaldo

Fenômeno (arte sobre foto)
A comovente despedida de Ronaldo Nazário, apelidado apropriadamente de Fenômeno, deixou pelo menos meia dezena de questões a serem dissecadas. Uma delas é o limite do corpo. Ronaldo sentia dores, intensas dores, resultantes das intervenções cirúrgicas a que foi submetido para combater as lesões colecionadas ao longo da vitoriosa carreira. 
Dono de uma arrancada inconfundível, Ronaldo jamais pediu licença para defensores. As tevês cansaram de mostrar, nesta semana, o atleta na sua melhor forma bufando, partindo para cima da zagueirada adversária, jogando a bola na frente e atropelando aqueles que encontravam-se na sua frente. Imagens de um passado brilhante. Juntando força e sutileza na medida certa, vencidos os zagueiros, bastava uma ginga para derrubar o goleiro e empurrar mansamente a bola para as redes.