29/07/2010

O mundo dos cães

A noite fria recém estava começando. Na tevê, o Datena esbravejava, como sempre. Tinha nas mãos mais um caso macabro. A mulher, uma trintona, havia ordenado a morte do companheiro, um septuagenário endinheirado. Queria ficar com trinta mil e mais alguns pertences. Pagou oitenta reais para dois malucos fazerem o serviço. E eles toparam. A câmera focava a foto da mulher, voltava para o apresentador gritão, mostrava o delegado, que se vangloriava do trabalho da investigação, freneticamente cortava para os dois matadores saindo do camburão.
Desgraça pouca é bobagem. A equipe de reportagem mostrava até o flagrante do encontro do corpo do homem. Peritos com providenciais luvas cirúrgicas afastavam o mato para receber mais um corpo vilipendiado. Sistematicamente abriam espaço para que a imagem pudesse ser captada e bem enquadrada na tevê. Música irritante de fundo, impropérios em direção à mulher. Embaixo da tela, numa barra rolante, os atentos telespectadores de todo o país disparavam torpedos contendo seus conceitos raivosos: “prisão perpétua”, “pena de morte”. Vagabunda, repetia o âncora do programa. “Mostra na tela a safada”.

O homem triste, casaco em cima de casaco, humilde, já com idade avançada, se identifica com as cenas. “É uma podridão”, diz para quem quiser ouvir. “A vida é uma droga e tem que ser encarada, mostrada. Isto é a verdade”, filosofava enquanto digeria os detalhes do crime. Olhos fixos na tela, nem piscava. 
A vida na tevê é triste. Em alguns canais, em alguns programas, ela é muito mais. É uma podridão, é uma droga. É um beco sem saída. Mortes violentas, estupros, brigas de vizinho, golpes, safadezas. O mundo resumido a uma briga de cães. Na arena, homens ferozes se enfrentam, despudorados, insensíveis, sepultando inocentes, destruindo os corpos de seus semelhantes. Olhos atentos, impropérios e raiva compõem o quadro. O homem triste parece se alimentar pelos olhos e pelos ouvidos. O fracasso da vida na tevê parece ser o seu próprio fracasso.  Parece que o ódio destilado na tela lhe pertence.
Estes programas que apresentam os casos mais escabrosos só vão ao ar porque há quem necessite deles. Há mentes que precisam receber diariamente doses de violência, de crimes, de sofrimentos. É um bálsamo para quem percebe somente a sombra a seu redor. É um alimento para quem vê só o lado escuro da existência. É uma sementeira de ódios, de sofrimentos, de sentimentos negativos.
A destruição faz parte da natureza. Os homens se destroem, destroem o meio ambiente. Mas não só destroem. Constroem, também. Se há mortes violentas aqui, há homens semeando a vida, lutando para que seus irmãos tenham melhor existência acolá. Se há os que vilipendiam corpos, há os construtores, como os cirurgiões que lutam para desenvolver técnicas de reconstituição de membros, de rostos inteiros, de órgãos. Neste cenário há sombras e luzes. Há escuridão e claridade. Há podridão e aromas agradáveis no nosso ar.  Os programas estão aí, a opção, no entanto, sempre será nossa, conforme nossas necessidades, nossas aptidões e nossa inteligência.
Não sou adepto dos programas ditos jornalismo-verdade. Nem sinto falta deles. São violentos demais, pesados demais e educativos de menos. Nossa vida já está tão desprovida de poesia, tão cheia de mensagens negativas que me cansei de, mesmo que furtivamente, ter acompanhado um pouquinho da encenação do Datena. Há circos com espetáculos mais serenos por ai. Ainda bem!   

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