28/04/2010

A estética do frio

O frio era intenso naquele tempo. Era maior, muito maior do que o de hoje. Talvez a temperatura fosse a mesma deste julho*. Porém, o frio que sentíamos era sem comparação. Gente simples, pobre, sofre com temperatura baixa. Com reforçadas botas, capote, poncho, luvas e outros apetrechos do estilo, não há porque se respeitar o termômetro.
Naquela época, porém, inverno era sinônimo de tristeza. Também pudera ao invés de botas reforçadas as simples e invariáveis havaianas. Elas duravam bem mais do que o ano. Quando os sinais do uso se faziam presentes, as tiras rebentavam e um providencial prego alongava a vida útil por mais alguns dias, talvez semanas. Os outros itens indispensáveis, que hoje adornam nossos roupeiros eram meros sonhos, acalentados embaixo de cobertas feitas de retalhos. Frio com chuva, então, era uma desgraça. Motivo de recolhimento, de faltar à aula, de matar a pelada de fim de tarde. Sem chuva, arriscávamos uma contenda de pés descalços, de calções curtos e puídos.
Quem era bom, não faltava ao jogo. Somente os fracos ficavam olhando o jogo da janela, com medinho de “engripar”. Gripe nenhuma nos derrubava. Mesmo que, entre uma jogada e outra, tivesse que fazer uma pausa para o espirro ou para o acesso de tosse. Isto era muito pouco frente ao gostoso xarope de açúcar, vinho e água fervidos, com um prego enferrujado para fortificar, adornados com uma cobertura generosa de gemada, preparado pela sempre diligente mãe, dona do lar e da saúde dos filhos.
A estética do frio, implantada pelo cantor, compositor e escritor pelotense Vitor Ramil, destaca que somos mesmo um povo diferente. Temos hábitos que não são reproduzidos em lugar nenhum deste imenso país. A cultura do frio, deste recolhimento temporário é um deles. Somente quem mora no Rio Grande Amado ou na Região Sul do país sabe o que é ter as mãos vermelhas e duras, a respiração dificultada e o corpo coberto por grossas camadas de roupas, que retiram nossos naturais movimentos.
Vejo que muitos adoram o frio. Dizem que nos vestimos com mais elegância. Defendem as delícias da culinária quente. Forno e fogão, quentão e pinhão, água e erva no ponto. Vinho e , quem sabe, até uma graspa. Porém, contrariando a vocação natural de gaúcho, nos últimos tempos tenho renegado o frio. Talvez porque lembre, mesmo que não queira, daqueles meninos jogando bola, tiritando entre uma jogada e outra, de pés descalços, sujos de grama e de barro. Da necessidade, sempre presente de colocar os pés na boca do fogão a lenha, tentando, inutilmente, retirar do corpo o excesso de frio. Mal sabem eles que este frio os seguirá por muito tempo, mesmo que um dia estejam abrigados em grossos casacos de lã.
O frio vem maltratando. Maltratando os idosos e os pequenos. Alarmando a todos com a antes inofensiva e dominada gripe. Lembro que a passagem do inverno para a primavera, que ali na frente ocorrerá novamente, era, naqueles tempos, motivo de justa alegria. Os dias cresciam, os nossos jogos tornavam-se intermináveis. O rufar das bandas escolares já se faziam ouvir. As palavras de ordem “esquerdo, direito, esquerdo, direito” marcavam o passo dos atrapalhados estudantes. Para nós, pequenos, ingênuos, marchar no dia 7 era uma grande alegria. Nada sabíamos de política, de sistema de governo, de ditadura, de recessão, de guerrilhas, dos porões, das torturas, de inimigos ocultos, comunistas ou não. A alegria era uma só. Era tempo de ganhar um par de conguinhas azuis, compradas na venda da Dona Délia ou no mercado do seu Becker. Elas, tão simples e funcionais, nos acompanhariam no Desfile da Pátria e no que restava de ano.

*Publicada originalmente no inverno de 2009.

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